sábado, 23 de abril de 2011

A Índia cristã

Outro dia, antes da viagem, eu escrevi aqui sobre a prática cultural da circuncisão genital feminina e o diálogo intercultural que tem sido levado a cabo para se alcançar a transformação. Dia desses, fiquei sabendo de um costume dos cristãos aqui na Índia que envolvia também crianças e dor física, e que hoje não acontece mais não em função de um diálogo intercultural que tenha sido travado, mas por uma questão de saúde da qual a própria população local tomou consciência.

Estávamos eu e Decarlos na segunda classe de um trem indo de Bangalore para Goa – 15 horas de viagem. As caminhas até eram confortáveis e o fato de não ter ar-condicionado (só ventilador) nem me incomodou – eu estava desconfortável e apreensiva era mesmo com os ratinhos que apareciam correndo pelo chão principalmente nas horas das refeições. Olha, eu não me importo com as vacas no meio da rua e lido bem com os macacos por aí, mas os ratos da Índia são pra mim uma das partes mais difíceis de aturar. Apesar disso, a viagem valeu a pena: em frente aos nossos assentos-camas sentaram duas freirinhas, noviças ainda, e o papo com elas foi valioso!

Não me surpreendeu encontrar as freiras em plena Índia, afinal a província de Goa foi colonizada pelos portugueses, e essa era uma das razões que tínhamos (além, é claro, da semana na praia) para irmos pra lá.

De toda a nossa conversa – sobre Deus, o universo, o poder da mente – o que mais me chamou a atenção foi a prática cultural que antes era exercida nas comunidades cristãs de Goa. Chegamos ao assunto porque eu logo reparei que tanto Isabel quanto Sílvia tinham na mão, no dorso do polegar, uma pequena cruz tatuada. Perguntei se elas tinham feito juntas e elas me contaram que foram tatuadas aos sete anos de idade, como um rito de passagem – a partir de então teriam sido aceitas pela Igreja e seriam parte dela.

Aí fui fazendo perguntas e elas me respondendo. Disseram que no dia estavam conscientes sobre o que aconteceria e por quê. Que na hora doeu muito, e elas choraram muito. Que depois, por quatro dias ficou tudo inchado, vermelho, e elas nem conseguiam ver o desenho. Mas que uma vez cicatrizado, esqueceram a dor, e a pequena cruz passou a ser motivo de orgulho!

Não apoio nenhuma prática cultural que provoque dor ou sofrimento em crianças, mas achei interessante como mesmo religiões mais universais (no sentido de mais expressivas mundialmente) adquirem distintas práticas em diferentes países.

Hoje já não tatuam mais as crianças, me contaram. Por causa da AIDS e do risco de lidar com agulhas (ao menos num país com parcas noções de higiene como é a Índia), a prática foi extinta.

Imagino que não tenha havido muito dilema no abandono desta prática cultural. Pensei que às vezes certas tradições tidas como centrais e portanto intocáveis para a comunidade podem não ser tão essenciais assim. Quando a necessidade se faz premente, muda-se, adapta-se aos novos tempos em nome de um valor maior. Pode ser preciso um diálogo entre diferentes culturas para gerar a mudança, ou então basta um diálogo intracomunitário ou intrafamiliar.

Ao menos em Goa as crianças já não são mais submetidas à dor de serem tatuadas. Cabe a elas, no futuro, decidir se querem uma tatoo e o que esta vai ser. E isso me parece muito mais justo. E livre. E humano.

3 comentários:

  1. Achei muito interessante. Não sabia dessa prática. Bjs.

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  2. Queridos primos, que bom que gostaram e que deixaram comentário! A-do-ro!

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