segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Sobre o medo

Eu tinha decidido que antes de começar a falar no blog sobre assuntos de diversidade e direitos humanos que não tivessem relação com a viagem, eu ia terminar primeiro de escrever sobre a Índia (tenho mais dois posts planejados). Mas tenho esbarrado em notícias, informações, fatos interessantes sobre os quais tem me dado vontade de escrever aqui. Na tentativa de levar antes a viagem ao fim, já deixei passar muita coisa. Resolvi, então, quebrar minhas próprias regras; afinal, não há razão pra eu ser tão rígida num blog onde a ideia é compartilhar e trocar pensamentos. Assim que me bater a inspiração, sem pressão, volto a escrever sobre a viagem.

Começo, pois, apenas publicando, em vídeo e por escrito, essa fala de sete minutos de Mia Couto – jornalista, poeta, escritor e biólogo de Moçambique – sobre o medo. É admirável como poeticamente, eu diria, ele consegue tocar em assuntos tão relevantes para a humanidade... temas que tornam a nossa dignidade humana mais, ou menos, valorizada, respeitada, levada a sério.

Tiro o meu chapéu para o Mia Couto! E deixo as reflexões com vocês!

“Bom, nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição, que precisa de um abrigo, que precisa de um refúgio. É um texto que eu vou ler, o presidente tinha dito que eu deveria falar espontaneamente, não sou capaz em sete minutos. Escrevi este texto, vou ler. Chama-se “Murar o medo”.

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer mostros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era pra me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exempo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeriu o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas. No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis, e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência...

O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave desta longa herança de intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha nao desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo ao oriente e ocidente. E porque se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação; precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos, para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. É isso que nos dizem. Para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que de um e de outro lado aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como por exemplo estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou apenas no ano passado um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver e nao apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra. Esta arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo pra superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será sem dúvida a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e como militar sem farda deixamos de questionar, deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros, e porque estamos em guerra não temos que fazer prova de coerência, nem de ética, nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida pra proteger a China das guerras e das invasões. A muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje no mundo muros que separam os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global, e dizê-lo: ‘Os que trabalham têm medo de perder o trabalho, os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, e as armas têm medo da falta de guerras’. E se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe. Muito obrigado.”

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A Índia do Sikhismo

Cinco horas separam a Índia tibetana da Índia do sikhismo. E lá fomos nós pra Amritsar, no Estado de Punjab.

A cidade em si é uma loucura: cheia de gente, carro, tuk-tuk, poeira, vendedor... Mas ao se entrar no complexo do Templo de Ouro, a realidade muda. Parece que se passa por um portal: das ruas empoeiradas para grandes corredores de chão de mármore limpíssimos; da multidão aglomerada para pessoas caminhando calmamente no espaço; do barulho das buzinas para o silêncio quebrado apenas pela música ao vivo direto do Templo de Ouro.

Que prazeroso era estar lá! Para adentrar, era necessário cobrir a cabeça e estar descalço. Inclusive tinha-se que lavar os pés nas pequenas “piscinas” de água que havia nas diferentes entradas.

O Sikhismo é uma religião interessante; a quinta maior do mundo. Foi fundada no final do século 15 pelo Guru Nanak, tendo como marco o momento em que o Guru, depois de ter sumido por dias, reapareceu e falou: “Não há hindus, não há muçulmanos” – diz-se que ele tinha 30 anos, sendo então 1499. Prega a igualdade de todas as crenças, também entre homens e mulheres, o fim das castas na Índia, a vida honesta (truthful living), a meditação, entre outras coisas. Me chamou a atenção o fato de o sikhismo ser contra o casamento de crianças, num país em que isso acontece com certa frequência. Os homens não cortam os cabelos e os prendem num turbante, que varia em cor, tamanho e até estilo. Além disso, há outras quatro coisas que um sikh deve ter consigo: um pente pequeno, uma adaga, uma pulseira de ferro e uma roupa de baixo especial (que é na realidade um tipo de short).

O Templo de Ouro fica no meio de um lago, considerado sagrado para os sikhs, que nele se banham para se purificar. Ir ao Templo de Ouro é como ir a Mecca para os muçulmanos – todos querem fazê-lo ao menos uma vez na vida.

Anexo ao complexo do templo, há um refeitório enorme aberto a quem quer que queira comer aí, independente de religião, nacionalidade, casta, gênero ou qualquer outra qualificação. O templo também oferece acomodação de graça para os peregrinos, venham eles de onde vierem. Deve haver uns cinco prédios de lodging, um deles específico para turistas. Eu e Decarlos até fomos lá conferir os aposentos para quem sabe ter a vivência de dormir uma noite no templo, mas fui eu quem não quis trocar o quarto de hotel relativamente limpo por um salão úmido cheio de camas grudadas uma na outra, com um único banheiro cujo cheiro que chegava ao quarto não me foi, digamos, convidativo. Pensei que me bastaria a experiência de visitar o complexo do Templo de Ouro, e nisso não errei!

O que vivemos nas várias horas que passamos lá dentro, em diferentes dias, foi de fato das experiências mais especiais que tivemos na Índia! Como eu mencionei antes, por pregar a igualdade das religiões, todas as pessoas são muito bem-vindas no templo sikh. E nós, por sermos ocidentais, acabávamos chamando a atenção! Muitos indianos, das mais diferentes idades, nos abordavam – alguns pediam para bater fotos (muitas vezes com a nossa própria máquina!), as crianças queriam apenas dizer “hello” e um aperto de mão; teve um grupo de seis senhoras que queriam abraços; outros, sem falar inglês, trocavam somente um sorriso (e quem precisa de outro idioma?) ... Mais que a riqueza, o ouro, o brilho do Golden Temple em si, toda essa interação é que foi marcante, especial, divina até!

A oração do crepúsculo, com o complexo todo iluminado com aquele brilho dourado que só a luz do fim de tarde tem, também é marcante. A devoção, o silêncio, a meditação, e ao final todos se ajoelham, fazendo sua reverência em direção ao templo. É mágico!

Há muitos anos, quando eu via aquele homem de turbante caminhando na avenida Beira-Mar de Florianópolis, jamais eu poderia imaginar que o templo da sua religião se tornaria um dos lugares que mais gostei de ter visitado na vida!

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A Índia tibetana

Depois de encontrar minha mãe em Nova Delhi, passamos por Rishikesh, a cidade mundial da Yoga, e de lá fomos para Dharamsala, às portas do Himalaia. Que Índia diferente! Do calor de quase 40 graus, agora a temperatura estava abaixo dos 20, e jaquetas, cachecóis e gorros eram indispensáveis! O fenótipo do povo de lá é bem mais tibetano que indiano, monges e monjas estão por todos os cantos, e as ruas e até mesmo os quartos de hotéis são bem mais limpos dos que aqueles que tínhamos visto até então (e olha que desde a chegada da mãe temos ficado em hotéis melhores!).

A parte de cima da cidade (Upper Dharamsala), também chamada de McLeod Ganj, foi criada a partir da fuga (exílio) do Dalai Lama (este que todos conhecemos!) do Tibete, em 1959, com a derrota para a China, tendo ele sido seguido por muitos de seus devotos. A Índia então cedeu ao povo tibetano as montanhas de Dharamsala, onde poderiam se sentir um pouco mais em casa, pelo ambiente e geografia do lugar. Não é fácil o que os tibetanos que querem fugir do país têm de enfrentar para chegar na Índia. São dias e dias de travessia pelas montanhas do Himalaia até chegar ao Nepal, e depois atravessar o Nepal para finalmente entrar na Índia. Muitas vezes com poucas roupas e mantimentos, muitos perdem os dedos dos pés por causa do frio. Uma jornada que a nós parece insana!

Visitamos o museu da cidade e a situação do Tibete ficou então mais clara pra nós. A China não abre mão do Tibete e hoje os tibetanos têm muitos dos seus direitos violados. Na sua luta por independência, liberdade de expressão é algo que eles não podem exercer. Sequer podem ter alguma foto do Dalai Lama em casa! No Museu vimos um documentário que foi feito em 2007-8. Um tibetano saiu pelo país pra perguntar pro seu povo o que eles achavam de a China sediar os Jogos Olímpicos de 2008. O cineasta foi preso e desde agosto desse ano a família não tem notícias dele. Tudo porque os tibetanos expressavam a opinião de que eles não conseguiam ficar felizes com o fato de a China receber o evento quando eles não tinham liberdade nem independência. O filme tinha também cenas nas casas das famílias em que eles mostravam onde escondiam as fotos de Dalai Lama, e a devoção deles a este “Holy Man” quando o viram na tevê.

Ainda no Museu tive a chance de pegar jornaisinhos sobre a situação dos direitos humanos no Tibete em 2010, informação originalmente publicada no relatório anual do Centro Tibetano para os Direitos Humanos e a Democracia (TCHRD). Atestam que hoje há 831 presos políticos no Tibete, que intelectuais e blogueiros são perseguidos, que professores e estudantes foram presos quando protestavam contra uma lei do governo chinês que pretende colocar o idioma tibetano de lado ao obrigar que livros e aulas nas escolas primárias sejam em Chinês (exceto as aulas de Inglês e de Tibetano em si), colocando assim em risco uma das maiores expressões de identidade do povo, e ainda menciona o relatório uma lei aprovada estatuindo que cabe ao governo chinês o controle e administração de monastérios, isso tudo para diminuir a influência de Dalai Lama e outros líderes do budismo tibetano que vivem no exílio.

Falando nisso, outra coisa que nos chamou a atenção em Dharamsala foi a greve de fome que monges estão fazendo para que a China retire seu pessoal militar do Monastério de Kirti, hoje ocupado, e que permitam aos monges liberdade de religião e de ir e vir.

A China chegou ao ponto de prender um menino de seis anos, considerado o próximo Panchen Lama (o mais alto Lama depois de Dalai Lama), três dias depois de Dalai Lama ter declarado que ele era a reencarnação do 10° Panchen Lama. Isso foi em 1995. Hoje, Gedhun Choekyi Nyima tem 22 anos e a China ainda se nega a divulgar o seu paradeiro, apesar de todo o clamor internacional por parte de ONGs, celebridades e diferentes órgãos da ONU (como o Comitê dos Direitos das Crianças e o Conselho de Direitos Humanos). O governo chinês limita-se a dizer que ele está bem, vivendo como qualquer outro adolescente, junto com sua família, mas não revela onde ele está e nem autoriza visitas. Nyima é considerado o mais jovem preso político do mundo.

Há pouco, em 10 de março deste ano, Dalai Lama abriu mão de seu poder político e disse ao povo tibetano que eles agora deveriam ter eleições para escolher seu líder de governo. No seu discurso, divulgado no saite do governo tibetano no exílio, que fica em Dharamsala, reivindicou uma autonomia verdadeira ao Tibete e propôs que o país receba a visita de uma delegação

internacional para que seja verificada a situação de seu povo. Dez dias depois desse anúncio, houve as primeiras eleições no Tibete, que, apesar da ocupação chinesa, é considerado área autônoma (embora não independente). Com participação de quase 59% da população, o professor de direito Lobsang Sangay foi eleito Primeiro-Ministro.

Será que com uma verdadeira democracia operando no Tibete, está mais próximo o dia em que a China aceitará que o Tibete deve ser um país soberano? O 14° Dalai Lama já está com 75 anos. Não sei se ele verá seu país independente e livre nesta reencarnação ou na próxima...


sábado, 23 de abril de 2011

A Índia cristã

Outro dia, antes da viagem, eu escrevi aqui sobre a prática cultural da circuncisão genital feminina e o diálogo intercultural que tem sido levado a cabo para se alcançar a transformação. Dia desses, fiquei sabendo de um costume dos cristãos aqui na Índia que envolvia também crianças e dor física, e que hoje não acontece mais não em função de um diálogo intercultural que tenha sido travado, mas por uma questão de saúde da qual a própria população local tomou consciência.

Estávamos eu e Decarlos na segunda classe de um trem indo de Bangalore para Goa – 15 horas de viagem. As caminhas até eram confortáveis e o fato de não ter ar-condicionado (só ventilador) nem me incomodou – eu estava desconfortável e apreensiva era mesmo com os ratinhos que apareciam correndo pelo chão principalmente nas horas das refeições. Olha, eu não me importo com as vacas no meio da rua e lido bem com os macacos por aí, mas os ratos da Índia são pra mim uma das partes mais difíceis de aturar. Apesar disso, a viagem valeu a pena: em frente aos nossos assentos-camas sentaram duas freirinhas, noviças ainda, e o papo com elas foi valioso!

Não me surpreendeu encontrar as freiras em plena Índia, afinal a província de Goa foi colonizada pelos portugueses, e essa era uma das razões que tínhamos (além, é claro, da semana na praia) para irmos pra lá.

De toda a nossa conversa – sobre Deus, o universo, o poder da mente – o que mais me chamou a atenção foi a prática cultural que antes era exercida nas comunidades cristãs de Goa. Chegamos ao assunto porque eu logo reparei que tanto Isabel quanto Sílvia tinham na mão, no dorso do polegar, uma pequena cruz tatuada. Perguntei se elas tinham feito juntas e elas me contaram que foram tatuadas aos sete anos de idade, como um rito de passagem – a partir de então teriam sido aceitas pela Igreja e seriam parte dela.

Aí fui fazendo perguntas e elas me respondendo. Disseram que no dia estavam conscientes sobre o que aconteceria e por quê. Que na hora doeu muito, e elas choraram muito. Que depois, por quatro dias ficou tudo inchado, vermelho, e elas nem conseguiam ver o desenho. Mas que uma vez cicatrizado, esqueceram a dor, e a pequena cruz passou a ser motivo de orgulho!

Não apoio nenhuma prática cultural que provoque dor ou sofrimento em crianças, mas achei interessante como mesmo religiões mais universais (no sentido de mais expressivas mundialmente) adquirem distintas práticas em diferentes países.

Hoje já não tatuam mais as crianças, me contaram. Por causa da AIDS e do risco de lidar com agulhas (ao menos num país com parcas noções de higiene como é a Índia), a prática foi extinta.

Imagino que não tenha havido muito dilema no abandono desta prática cultural. Pensei que às vezes certas tradições tidas como centrais e portanto intocáveis para a comunidade podem não ser tão essenciais assim. Quando a necessidade se faz premente, muda-se, adapta-se aos novos tempos em nome de um valor maior. Pode ser preciso um diálogo entre diferentes culturas para gerar a mudança, ou então basta um diálogo intracomunitário ou intrafamiliar.

Ao menos em Goa as crianças já não são mais submetidas à dor de serem tatuadas. Cabe a elas, no futuro, decidir se querem uma tatoo e o que esta vai ser. E isso me parece muito mais justo. E livre. E humano.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

As guerras no Vietnã

É incrível o Vietnã! Na nossa programação, tínhamos deixado mais ou menos duas semanas para ele. É pouco! O país merece no mínimo três! E no fim, pra nós muita coisa ficou pra trás e o Vietnã faz parte da lista dos países para os quais eu quero muito voltar.

O Vietnã foi a primeira nação comunista onde estive. Curiosamente, participa do mercado mundial como qualquer outro país capitalista. Embora haja apenas um partido político – o Partido Comunista, claro – há eleições para que o povo escolha entre certos membros do partido aquele por quem querem ser governados. Contudo, a pessoa mais importante do governo é o presidente do próprio partido, e este não é o povo que escolhe.

Tirando isso e o fato de que o Facebook é bloqueado no Vietnã, em princípio o povo não me pareceu tão podado nas suas liberdades; em princípio. Liberdade de consumo, por exemplo, eles têm. Irônico?

Ho Chi Minh – ou “Uncle Ho” –, o grande responsável pela instauração do comunismo no país, tinha grandes qualidades. E uma das coisas interessantes que ele promoveu foi a reforma agrária. Depois de ter desapropriado as terras, ele as redistribuiu de forma justa. Cada família recebeu seus campos de arroz igualitariamente: um de boa qualidade, um nem tanto, um de pior qualidade, sem importar que não estejam lado a lado os pedaços de terra que pertençam a uma mesma família. A prioridade era a distribuição justa.

Não há como negar que os Vietnamitas são um povo lutador – e vencedor! Mal tinham vencido a guerra pela independência contra a França em 1954, um ano depois os EUA já estavam no país. Tendo perdido já três batalhas contra o comunismo (a invasão da Baía dos Porcos, no sul de Cuba; a construção do muro de Berlim; o estabelecimento de acordos entre o governo Pró-Ocidente do Laos e seu movimento comunista, contra a vontade americana), no começo dos anos 60 os States decidiram colocar tudo na guerra contra o Vietnã (principalmente o sul – o país estava dividido em dois e no norte Ho Chi Minh já tinha estabelecido a nação comunista), pois mais uma batalha na sua política do “containment” (conter o comunismo no mundo) eles não iriam perder. Nas palavras de Kennedy, “agora nós temos um problema pra fazer com que acreditem no nosso poder novamente, e o Vietnã parece ser o país para tal” (tradução livre).

Essa guerra foi cruel... O War Remants Museum, na Ho Chi Minh City (antiga Saigon), explica e mostra tudo muito bem. Meus olhos se encheram de lágrimas várias vezes e a tristeza estava estampada na cara de cada um dos visitantes do museu. Chega a dar uma raiva generalizada dos americanos, e tu te perguntas como hoje o Vietnã consegue manter relações diplomáticas com os EUA (desde 1995). Mas aí há que se pensar nas palavras do próprio Ho Chi Minh: ele deixou claro aos vietnamitas que a guerra era obra do governo americano; que eles não perdessem o respeito pelo povo americano em geral.

A guerra chegou ao norte, pois era por lá que vinham os armamentos e mais pessoas para lutar ao lado dos Vietcongs. Nessa região ficamos uns dias numa fazenda e conhecemos a mãe da nossa anfitriã, que lutou na guerra, andou quilômetros carregando artilharia mais pesada que o seu próprio peso, e levou dois anos para percorrer duzentos e poucos quilômetros de volta pra casa. Vimos ainda crateras feitas pelas bombas, hoje usadas como “fish tanks”.

Entre agente laranja com consequências que se fazem sentir até os dias atuais, muita morte e destruição, a partir de 1973 os EUA começaram a se retirar do país, e em 1975 deu-se a unificação do Vietnã, vitória ainda celebrada!

Hoje a guerra do Vietnã é outra. Embora a indústria turística venha crescendo ano a ano e portanto o país esteja mais e mais preparado para o turismo (há que se dizer, contudo, que o foco primordial deles é o turismo local; pouca coisa em inglês, por exemplo), o trabalho informal ainda alcança a imensa maioria da população e é fácil encontrar crianças trabalhando nas ruas. Além dos seus desafios econômicos, falta ao povo do Vietnã liberdade de religião, de associação, de imprensa.

Chama a atenção um país em que 80% da população se diz budista ter bem menos templos em comparação a outros países de maioria budista, e o fato de que não se vê nenhum monge na rua. Teme-se que a religião “domine” mais que o comunismo, controle mais o povo, por isso a religião nunca foi muito estimulada pelo governo. Hoje a lei vietnamita exige que os grupos religiosos sejam registrados e que operem estritamente sob controle governamental. Quem faz parte de igrejas/templos não registrados é considerado subversivo e por isso preso. Até mesmo líderes de religiões registradas que propõem mais liberdade religiosa são perseguidos.

Liberdade de imprensa é outra coisa que não existe. O governo controla tudo, até as artes que podem ser expostas no Museu de Artes da capital, Hanoi. Está proibida a publicação e divulgação de conteúdo de crítica ao governo, tendo este prendido blogueiros e ativistas políticos que o fizeram na luta por direitos fundamentais. Eu já falei aqui que o Facebook é oficialmente bloqueado, embora se tenha que admitir que é muito fácil burlar isso. Até eu, que não sou TI, dava meu jeitinho. Oficialmente, internet cafés têm que obter identificação com foto dos usuários e ainda monitorar e armazenar informação sobre suas atividades online, mas é fato que nas áreas turísticas eles mudam o endereço do proxy (o De me ajudou nessa!) e consegue-se acessar os saites de mídia social sem problema.

De qualquer forma, a maioria desses dados eu fiquei sabendo ao ler relatórios de direitos humanos sobre o Vietnã. Como turista apenas, não se nota essa falta de liberdade claramente. E eu soube por pessoas que moram lá que a maioria da população é alienada (no sentido mais clássico da palavra), e na sua ignorância são felizes e não reclamam da vida ou da política do país.

Outra coisa que me chamou a atenção nas minhas leituras foi o fato de que em 2009 o Vietnã negou 45 propostas da ONU no sentido de diminuir as restrições na internet, autorizar mídia independente ou reconhecer que os cidadãos têm o direito de expressar suas opiniões, por exemplo.

É... o Vietnã é este país contraditório, incrível, interessante, difícil de entender! Entre cavernas, formações rochosas belíssimas, praias, povos étnicos, costumes exóticos aos olhos ocidentais, muita história e mesmo uma “não simpatia” natural do povo das cidades, tem um sentimento que me foi despertado profundamente: a vontade de passar mais tempo lá, absorver mais as nuances do país, entender suas peculiaridades, conhecer melhor seus povos... Entrei no Vietnã com muitas curiosidades e saí com inúmeras perguntas; sigo lendo e pesquisando... Algumas consegui responder, outras ainda não. Em meio às minhas incertezas e dúvidas, uma coisa é certa: ao Vietnã voltarei!