Eu tinha decidido que antes de começar a falar no blog sobre assuntos de diversidade e direitos humanos que não tivessem relação com a viagem, eu ia terminar primeiro de escrever sobre a Índia (tenho mais dois posts planejados). Mas tenho esbarrado em notícias, informações, fatos interessantes sobre os quais tem me dado vontade de escrever aqui. Na tentativa de levar antes a viagem ao fim, já deixei passar muita coisa. Resolvi, então, quebrar minhas próprias regras; afinal, não há razão pra eu ser tão rígida num blog onde a ideia é compartilhar e trocar pensamentos. Assim que me bater a inspiração, sem pressão, volto a escrever sobre a viagem.
Começo, pois, apenas publicando, em vídeo e por escrito, essa fala de sete minutos de Mia Couto – jornalista, poeta, escritor e biólogo de Moçambique – sobre o medo. É admirável como poeticamente, eu diria, ele consegue tocar em assuntos tão relevantes para a humanidade... temas que tornam a nossa dignidade humana mais, ou menos, valorizada, respeitada, levada a sério.
Tiro o meu chapéu para o Mia Couto! E deixo as reflexões com vocês!
“Bom, nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição, que precisa de um abrigo, que precisa de um refúgio. É um texto que eu vou ler, o presidente tinha dito que eu deveria falar espontaneamente, não sou capaz em sete minutos. Escrevi este texto, vou ler. Chama-se “Murar o medo”.
O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer mostros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era pra me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exempo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.
Quando deixei minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeriu o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas. No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis, e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência...
O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave desta longa herança de intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha nao desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo ao oriente e ocidente. E porque se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação; precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.
Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos, para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. É isso que nos dizem. Para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.
Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que de um e de outro lado aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como por exemplo estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou apenas no ano passado um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver e nao apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra. Esta arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo pra superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será sem dúvida a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e como militar sem farda deixamos de questionar, deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros, e porque estamos em guerra não temos que fazer prova de coerência, nem de ética, nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida pra proteger a China das guerras e das invasões. A muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje no mundo muros que separam os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global, e dizê-lo: ‘Os que trabalham têm medo de perder o trabalho, os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, e as armas têm medo da falta de guerras’. E se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe. Muito obrigado.”