segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Sobre o medo

Eu tinha decidido que antes de começar a falar no blog sobre assuntos de diversidade e direitos humanos que não tivessem relação com a viagem, eu ia terminar primeiro de escrever sobre a Índia (tenho mais dois posts planejados). Mas tenho esbarrado em notícias, informações, fatos interessantes sobre os quais tem me dado vontade de escrever aqui. Na tentativa de levar antes a viagem ao fim, já deixei passar muita coisa. Resolvi, então, quebrar minhas próprias regras; afinal, não há razão pra eu ser tão rígida num blog onde a ideia é compartilhar e trocar pensamentos. Assim que me bater a inspiração, sem pressão, volto a escrever sobre a viagem.

Começo, pois, apenas publicando, em vídeo e por escrito, essa fala de sete minutos de Mia Couto – jornalista, poeta, escritor e biólogo de Moçambique – sobre o medo. É admirável como poeticamente, eu diria, ele consegue tocar em assuntos tão relevantes para a humanidade... temas que tornam a nossa dignidade humana mais, ou menos, valorizada, respeitada, levada a sério.

Tiro o meu chapéu para o Mia Couto! E deixo as reflexões com vocês!

“Bom, nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição, que precisa de um abrigo, que precisa de um refúgio. É um texto que eu vou ler, o presidente tinha dito que eu deveria falar espontaneamente, não sou capaz em sete minutos. Escrevi este texto, vou ler. Chama-se “Murar o medo”.

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer mostros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era pra me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exempo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender.

Quando deixei minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeriu o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas. No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis, e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência...

O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo, cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave desta longa herança de intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha nao desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo ao oriente e ocidente. E porque se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação; precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos, para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. É isso que nos dizem. Para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que de um e de outro lado aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como por exemplo estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou apenas no ano passado um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver e nao apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra. Esta arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo pra superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será sem dúvida a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres. A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e como militar sem farda deixamos de questionar, deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros, e porque estamos em guerra não temos que fazer prova de coerência, nem de ética, nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida pra proteger a China das guerras e das invasões. A muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje no mundo muros que separam os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é o medo global, e dizê-lo: ‘Os que trabalham têm medo de perder o trabalho, os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, e as armas têm medo da falta de guerras’. E se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe. Muito obrigado.”

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A Índia do Sikhismo

Cinco horas separam a Índia tibetana da Índia do sikhismo. E lá fomos nós pra Amritsar, no Estado de Punjab.

A cidade em si é uma loucura: cheia de gente, carro, tuk-tuk, poeira, vendedor... Mas ao se entrar no complexo do Templo de Ouro, a realidade muda. Parece que se passa por um portal: das ruas empoeiradas para grandes corredores de chão de mármore limpíssimos; da multidão aglomerada para pessoas caminhando calmamente no espaço; do barulho das buzinas para o silêncio quebrado apenas pela música ao vivo direto do Templo de Ouro.

Que prazeroso era estar lá! Para adentrar, era necessário cobrir a cabeça e estar descalço. Inclusive tinha-se que lavar os pés nas pequenas “piscinas” de água que havia nas diferentes entradas.

O Sikhismo é uma religião interessante; a quinta maior do mundo. Foi fundada no final do século 15 pelo Guru Nanak, tendo como marco o momento em que o Guru, depois de ter sumido por dias, reapareceu e falou: “Não há hindus, não há muçulmanos” – diz-se que ele tinha 30 anos, sendo então 1499. Prega a igualdade de todas as crenças, também entre homens e mulheres, o fim das castas na Índia, a vida honesta (truthful living), a meditação, entre outras coisas. Me chamou a atenção o fato de o sikhismo ser contra o casamento de crianças, num país em que isso acontece com certa frequência. Os homens não cortam os cabelos e os prendem num turbante, que varia em cor, tamanho e até estilo. Além disso, há outras quatro coisas que um sikh deve ter consigo: um pente pequeno, uma adaga, uma pulseira de ferro e uma roupa de baixo especial (que é na realidade um tipo de short).

O Templo de Ouro fica no meio de um lago, considerado sagrado para os sikhs, que nele se banham para se purificar. Ir ao Templo de Ouro é como ir a Mecca para os muçulmanos – todos querem fazê-lo ao menos uma vez na vida.

Anexo ao complexo do templo, há um refeitório enorme aberto a quem quer que queira comer aí, independente de religião, nacionalidade, casta, gênero ou qualquer outra qualificação. O templo também oferece acomodação de graça para os peregrinos, venham eles de onde vierem. Deve haver uns cinco prédios de lodging, um deles específico para turistas. Eu e Decarlos até fomos lá conferir os aposentos para quem sabe ter a vivência de dormir uma noite no templo, mas fui eu quem não quis trocar o quarto de hotel relativamente limpo por um salão úmido cheio de camas grudadas uma na outra, com um único banheiro cujo cheiro que chegava ao quarto não me foi, digamos, convidativo. Pensei que me bastaria a experiência de visitar o complexo do Templo de Ouro, e nisso não errei!

O que vivemos nas várias horas que passamos lá dentro, em diferentes dias, foi de fato das experiências mais especiais que tivemos na Índia! Como eu mencionei antes, por pregar a igualdade das religiões, todas as pessoas são muito bem-vindas no templo sikh. E nós, por sermos ocidentais, acabávamos chamando a atenção! Muitos indianos, das mais diferentes idades, nos abordavam – alguns pediam para bater fotos (muitas vezes com a nossa própria máquina!), as crianças queriam apenas dizer “hello” e um aperto de mão; teve um grupo de seis senhoras que queriam abraços; outros, sem falar inglês, trocavam somente um sorriso (e quem precisa de outro idioma?) ... Mais que a riqueza, o ouro, o brilho do Golden Temple em si, toda essa interação é que foi marcante, especial, divina até!

A oração do crepúsculo, com o complexo todo iluminado com aquele brilho dourado que só a luz do fim de tarde tem, também é marcante. A devoção, o silêncio, a meditação, e ao final todos se ajoelham, fazendo sua reverência em direção ao templo. É mágico!

Há muitos anos, quando eu via aquele homem de turbante caminhando na avenida Beira-Mar de Florianópolis, jamais eu poderia imaginar que o templo da sua religião se tornaria um dos lugares que mais gostei de ter visitado na vida!

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A Índia tibetana

Depois de encontrar minha mãe em Nova Delhi, passamos por Rishikesh, a cidade mundial da Yoga, e de lá fomos para Dharamsala, às portas do Himalaia. Que Índia diferente! Do calor de quase 40 graus, agora a temperatura estava abaixo dos 20, e jaquetas, cachecóis e gorros eram indispensáveis! O fenótipo do povo de lá é bem mais tibetano que indiano, monges e monjas estão por todos os cantos, e as ruas e até mesmo os quartos de hotéis são bem mais limpos dos que aqueles que tínhamos visto até então (e olha que desde a chegada da mãe temos ficado em hotéis melhores!).

A parte de cima da cidade (Upper Dharamsala), também chamada de McLeod Ganj, foi criada a partir da fuga (exílio) do Dalai Lama (este que todos conhecemos!) do Tibete, em 1959, com a derrota para a China, tendo ele sido seguido por muitos de seus devotos. A Índia então cedeu ao povo tibetano as montanhas de Dharamsala, onde poderiam se sentir um pouco mais em casa, pelo ambiente e geografia do lugar. Não é fácil o que os tibetanos que querem fugir do país têm de enfrentar para chegar na Índia. São dias e dias de travessia pelas montanhas do Himalaia até chegar ao Nepal, e depois atravessar o Nepal para finalmente entrar na Índia. Muitas vezes com poucas roupas e mantimentos, muitos perdem os dedos dos pés por causa do frio. Uma jornada que a nós parece insana!

Visitamos o museu da cidade e a situação do Tibete ficou então mais clara pra nós. A China não abre mão do Tibete e hoje os tibetanos têm muitos dos seus direitos violados. Na sua luta por independência, liberdade de expressão é algo que eles não podem exercer. Sequer podem ter alguma foto do Dalai Lama em casa! No Museu vimos um documentário que foi feito em 2007-8. Um tibetano saiu pelo país pra perguntar pro seu povo o que eles achavam de a China sediar os Jogos Olímpicos de 2008. O cineasta foi preso e desde agosto desse ano a família não tem notícias dele. Tudo porque os tibetanos expressavam a opinião de que eles não conseguiam ficar felizes com o fato de a China receber o evento quando eles não tinham liberdade nem independência. O filme tinha também cenas nas casas das famílias em que eles mostravam onde escondiam as fotos de Dalai Lama, e a devoção deles a este “Holy Man” quando o viram na tevê.

Ainda no Museu tive a chance de pegar jornaisinhos sobre a situação dos direitos humanos no Tibete em 2010, informação originalmente publicada no relatório anual do Centro Tibetano para os Direitos Humanos e a Democracia (TCHRD). Atestam que hoje há 831 presos políticos no Tibete, que intelectuais e blogueiros são perseguidos, que professores e estudantes foram presos quando protestavam contra uma lei do governo chinês que pretende colocar o idioma tibetano de lado ao obrigar que livros e aulas nas escolas primárias sejam em Chinês (exceto as aulas de Inglês e de Tibetano em si), colocando assim em risco uma das maiores expressões de identidade do povo, e ainda menciona o relatório uma lei aprovada estatuindo que cabe ao governo chinês o controle e administração de monastérios, isso tudo para diminuir a influência de Dalai Lama e outros líderes do budismo tibetano que vivem no exílio.

Falando nisso, outra coisa que nos chamou a atenção em Dharamsala foi a greve de fome que monges estão fazendo para que a China retire seu pessoal militar do Monastério de Kirti, hoje ocupado, e que permitam aos monges liberdade de religião e de ir e vir.

A China chegou ao ponto de prender um menino de seis anos, considerado o próximo Panchen Lama (o mais alto Lama depois de Dalai Lama), três dias depois de Dalai Lama ter declarado que ele era a reencarnação do 10° Panchen Lama. Isso foi em 1995. Hoje, Gedhun Choekyi Nyima tem 22 anos e a China ainda se nega a divulgar o seu paradeiro, apesar de todo o clamor internacional por parte de ONGs, celebridades e diferentes órgãos da ONU (como o Comitê dos Direitos das Crianças e o Conselho de Direitos Humanos). O governo chinês limita-se a dizer que ele está bem, vivendo como qualquer outro adolescente, junto com sua família, mas não revela onde ele está e nem autoriza visitas. Nyima é considerado o mais jovem preso político do mundo.

Há pouco, em 10 de março deste ano, Dalai Lama abriu mão de seu poder político e disse ao povo tibetano que eles agora deveriam ter eleições para escolher seu líder de governo. No seu discurso, divulgado no saite do governo tibetano no exílio, que fica em Dharamsala, reivindicou uma autonomia verdadeira ao Tibete e propôs que o país receba a visita de uma delegação

internacional para que seja verificada a situação de seu povo. Dez dias depois desse anúncio, houve as primeiras eleições no Tibete, que, apesar da ocupação chinesa, é considerado área autônoma (embora não independente). Com participação de quase 59% da população, o professor de direito Lobsang Sangay foi eleito Primeiro-Ministro.

Será que com uma verdadeira democracia operando no Tibete, está mais próximo o dia em que a China aceitará que o Tibete deve ser um país soberano? O 14° Dalai Lama já está com 75 anos. Não sei se ele verá seu país independente e livre nesta reencarnação ou na próxima...


sábado, 23 de abril de 2011

A Índia cristã

Outro dia, antes da viagem, eu escrevi aqui sobre a prática cultural da circuncisão genital feminina e o diálogo intercultural que tem sido levado a cabo para se alcançar a transformação. Dia desses, fiquei sabendo de um costume dos cristãos aqui na Índia que envolvia também crianças e dor física, e que hoje não acontece mais não em função de um diálogo intercultural que tenha sido travado, mas por uma questão de saúde da qual a própria população local tomou consciência.

Estávamos eu e Decarlos na segunda classe de um trem indo de Bangalore para Goa – 15 horas de viagem. As caminhas até eram confortáveis e o fato de não ter ar-condicionado (só ventilador) nem me incomodou – eu estava desconfortável e apreensiva era mesmo com os ratinhos que apareciam correndo pelo chão principalmente nas horas das refeições. Olha, eu não me importo com as vacas no meio da rua e lido bem com os macacos por aí, mas os ratos da Índia são pra mim uma das partes mais difíceis de aturar. Apesar disso, a viagem valeu a pena: em frente aos nossos assentos-camas sentaram duas freirinhas, noviças ainda, e o papo com elas foi valioso!

Não me surpreendeu encontrar as freiras em plena Índia, afinal a província de Goa foi colonizada pelos portugueses, e essa era uma das razões que tínhamos (além, é claro, da semana na praia) para irmos pra lá.

De toda a nossa conversa – sobre Deus, o universo, o poder da mente – o que mais me chamou a atenção foi a prática cultural que antes era exercida nas comunidades cristãs de Goa. Chegamos ao assunto porque eu logo reparei que tanto Isabel quanto Sílvia tinham na mão, no dorso do polegar, uma pequena cruz tatuada. Perguntei se elas tinham feito juntas e elas me contaram que foram tatuadas aos sete anos de idade, como um rito de passagem – a partir de então teriam sido aceitas pela Igreja e seriam parte dela.

Aí fui fazendo perguntas e elas me respondendo. Disseram que no dia estavam conscientes sobre o que aconteceria e por quê. Que na hora doeu muito, e elas choraram muito. Que depois, por quatro dias ficou tudo inchado, vermelho, e elas nem conseguiam ver o desenho. Mas que uma vez cicatrizado, esqueceram a dor, e a pequena cruz passou a ser motivo de orgulho!

Não apoio nenhuma prática cultural que provoque dor ou sofrimento em crianças, mas achei interessante como mesmo religiões mais universais (no sentido de mais expressivas mundialmente) adquirem distintas práticas em diferentes países.

Hoje já não tatuam mais as crianças, me contaram. Por causa da AIDS e do risco de lidar com agulhas (ao menos num país com parcas noções de higiene como é a Índia), a prática foi extinta.

Imagino que não tenha havido muito dilema no abandono desta prática cultural. Pensei que às vezes certas tradições tidas como centrais e portanto intocáveis para a comunidade podem não ser tão essenciais assim. Quando a necessidade se faz premente, muda-se, adapta-se aos novos tempos em nome de um valor maior. Pode ser preciso um diálogo entre diferentes culturas para gerar a mudança, ou então basta um diálogo intracomunitário ou intrafamiliar.

Ao menos em Goa as crianças já não são mais submetidas à dor de serem tatuadas. Cabe a elas, no futuro, decidir se querem uma tatoo e o que esta vai ser. E isso me parece muito mais justo. E livre. E humano.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

As guerras no Vietnã

É incrível o Vietnã! Na nossa programação, tínhamos deixado mais ou menos duas semanas para ele. É pouco! O país merece no mínimo três! E no fim, pra nós muita coisa ficou pra trás e o Vietnã faz parte da lista dos países para os quais eu quero muito voltar.

O Vietnã foi a primeira nação comunista onde estive. Curiosamente, participa do mercado mundial como qualquer outro país capitalista. Embora haja apenas um partido político – o Partido Comunista, claro – há eleições para que o povo escolha entre certos membros do partido aquele por quem querem ser governados. Contudo, a pessoa mais importante do governo é o presidente do próprio partido, e este não é o povo que escolhe.

Tirando isso e o fato de que o Facebook é bloqueado no Vietnã, em princípio o povo não me pareceu tão podado nas suas liberdades; em princípio. Liberdade de consumo, por exemplo, eles têm. Irônico?

Ho Chi Minh – ou “Uncle Ho” –, o grande responsável pela instauração do comunismo no país, tinha grandes qualidades. E uma das coisas interessantes que ele promoveu foi a reforma agrária. Depois de ter desapropriado as terras, ele as redistribuiu de forma justa. Cada família recebeu seus campos de arroz igualitariamente: um de boa qualidade, um nem tanto, um de pior qualidade, sem importar que não estejam lado a lado os pedaços de terra que pertençam a uma mesma família. A prioridade era a distribuição justa.

Não há como negar que os Vietnamitas são um povo lutador – e vencedor! Mal tinham vencido a guerra pela independência contra a França em 1954, um ano depois os EUA já estavam no país. Tendo perdido já três batalhas contra o comunismo (a invasão da Baía dos Porcos, no sul de Cuba; a construção do muro de Berlim; o estabelecimento de acordos entre o governo Pró-Ocidente do Laos e seu movimento comunista, contra a vontade americana), no começo dos anos 60 os States decidiram colocar tudo na guerra contra o Vietnã (principalmente o sul – o país estava dividido em dois e no norte Ho Chi Minh já tinha estabelecido a nação comunista), pois mais uma batalha na sua política do “containment” (conter o comunismo no mundo) eles não iriam perder. Nas palavras de Kennedy, “agora nós temos um problema pra fazer com que acreditem no nosso poder novamente, e o Vietnã parece ser o país para tal” (tradução livre).

Essa guerra foi cruel... O War Remants Museum, na Ho Chi Minh City (antiga Saigon), explica e mostra tudo muito bem. Meus olhos se encheram de lágrimas várias vezes e a tristeza estava estampada na cara de cada um dos visitantes do museu. Chega a dar uma raiva generalizada dos americanos, e tu te perguntas como hoje o Vietnã consegue manter relações diplomáticas com os EUA (desde 1995). Mas aí há que se pensar nas palavras do próprio Ho Chi Minh: ele deixou claro aos vietnamitas que a guerra era obra do governo americano; que eles não perdessem o respeito pelo povo americano em geral.

A guerra chegou ao norte, pois era por lá que vinham os armamentos e mais pessoas para lutar ao lado dos Vietcongs. Nessa região ficamos uns dias numa fazenda e conhecemos a mãe da nossa anfitriã, que lutou na guerra, andou quilômetros carregando artilharia mais pesada que o seu próprio peso, e levou dois anos para percorrer duzentos e poucos quilômetros de volta pra casa. Vimos ainda crateras feitas pelas bombas, hoje usadas como “fish tanks”.

Entre agente laranja com consequências que se fazem sentir até os dias atuais, muita morte e destruição, a partir de 1973 os EUA começaram a se retirar do país, e em 1975 deu-se a unificação do Vietnã, vitória ainda celebrada!

Hoje a guerra do Vietnã é outra. Embora a indústria turística venha crescendo ano a ano e portanto o país esteja mais e mais preparado para o turismo (há que se dizer, contudo, que o foco primordial deles é o turismo local; pouca coisa em inglês, por exemplo), o trabalho informal ainda alcança a imensa maioria da população e é fácil encontrar crianças trabalhando nas ruas. Além dos seus desafios econômicos, falta ao povo do Vietnã liberdade de religião, de associação, de imprensa.

Chama a atenção um país em que 80% da população se diz budista ter bem menos templos em comparação a outros países de maioria budista, e o fato de que não se vê nenhum monge na rua. Teme-se que a religião “domine” mais que o comunismo, controle mais o povo, por isso a religião nunca foi muito estimulada pelo governo. Hoje a lei vietnamita exige que os grupos religiosos sejam registrados e que operem estritamente sob controle governamental. Quem faz parte de igrejas/templos não registrados é considerado subversivo e por isso preso. Até mesmo líderes de religiões registradas que propõem mais liberdade religiosa são perseguidos.

Liberdade de imprensa é outra coisa que não existe. O governo controla tudo, até as artes que podem ser expostas no Museu de Artes da capital, Hanoi. Está proibida a publicação e divulgação de conteúdo de crítica ao governo, tendo este prendido blogueiros e ativistas políticos que o fizeram na luta por direitos fundamentais. Eu já falei aqui que o Facebook é oficialmente bloqueado, embora se tenha que admitir que é muito fácil burlar isso. Até eu, que não sou TI, dava meu jeitinho. Oficialmente, internet cafés têm que obter identificação com foto dos usuários e ainda monitorar e armazenar informação sobre suas atividades online, mas é fato que nas áreas turísticas eles mudam o endereço do proxy (o De me ajudou nessa!) e consegue-se acessar os saites de mídia social sem problema.

De qualquer forma, a maioria desses dados eu fiquei sabendo ao ler relatórios de direitos humanos sobre o Vietnã. Como turista apenas, não se nota essa falta de liberdade claramente. E eu soube por pessoas que moram lá que a maioria da população é alienada (no sentido mais clássico da palavra), e na sua ignorância são felizes e não reclamam da vida ou da política do país.

Outra coisa que me chamou a atenção nas minhas leituras foi o fato de que em 2009 o Vietnã negou 45 propostas da ONU no sentido de diminuir as restrições na internet, autorizar mídia independente ou reconhecer que os cidadãos têm o direito de expressar suas opiniões, por exemplo.

É... o Vietnã é este país contraditório, incrível, interessante, difícil de entender! Entre cavernas, formações rochosas belíssimas, praias, povos étnicos, costumes exóticos aos olhos ocidentais, muita história e mesmo uma “não simpatia” natural do povo das cidades, tem um sentimento que me foi despertado profundamente: a vontade de passar mais tempo lá, absorver mais as nuances do país, entender suas peculiaridades, conhecer melhor seus povos... Entrei no Vietnã com muitas curiosidades e saí com inúmeras perguntas; sigo lendo e pesquisando... Algumas consegui responder, outras ainda não. Em meio às minhas incertezas e dúvidas, uma coisa é certa: ao Vietnã voltarei!


segunda-feira, 7 de março de 2011

Voluntariando no Camboja

Apesar da chegada no Camboja ter tido os seus percalços, como eu contei no último post, o país é demais! O povo é absolutamente encantador, com um sorriso que contagia, e a impressão que eu tenho é que os cambojanos querem fazer tudo direitinho, tudo pra agradar o turista, que estão a fim mesmo de que o país cresça e se desenvolva.

Depois da queda do Império de Angkor, que foi glorioso nos séculos VIII a XII e sobreviveu aos trancos e barrancos até o século XV, o país não teve muita sorte, digamos. E no século XX, então, o Camboja passou por dominação japonesa na II Guerra Mundial, luta pela independência da França, golpe de Estado, envolvimento na famosa Guerra do Vietnã (na qual morreram 300.000 cambojanos), guerra civil, além do cruel regime comunista-agrário radical imposto pelo Khmer Vermelho de 1975-79 (Khmer Rouge, no original), quando milhares foram submetidos a trabalho forçado, torturados, assassinados, mortos por doença ou inanição, para dar um ideia do tamanho da tragédia. Me espanta que após tudo isso o povo do Camboja seja tão caloroso e sorridente. Até agora eles são os meus preferidos, ultrapassando os simpáticos balineses! :)

Antes mesmo de sairmos em viagem, eu e Decarlos já tínhamos conversado que queríamos visitar um orfanato em algum momento. Em Ko Tao, na Tailândia, um dos instrutores de mergulho nos falou que tinha ido várias vezes no New Futures, em Takeo, uma vilazinha ao sul da capital, Phnom Penh. Pesquisamos, gostamos bastante da ideia e fomos pra lá!

A estrutura do orfanato hoje, depois de quase ter fechado em 2008 por falta de recursos, é muito boa. Uma casa de tamanho médio com cinco quartos, nos quais dormem as 50 crianças, de 6 a 20 anos, divididas por sexo e idade. No pátio do orfanato foi construída uma biblioteca, uma sala de aula, um salão de beleza, uma sala de carpintaria/marcenaria, tem um campinho de futebol, um playground, enfim, tudo o que as crianças precisam para brincar e aprender.

New Futures Organization tem também uma casa grande onde ficam os voluntários, naturalmente pagando acomodação, com internet, café da manhã e janta. Tudo é feito para facilitar a vida de quem vem pra ajudar, e a casa pelo jeito está sempre cheia. Por lá já passou gente de 32 nacionalidades diferentes!

De manhã as crianças vão à escola, voltam pra almoçar e depois vão mais umas horinhas à tarde. Mas como as aulas nas escolas cambojanas são meio instáveis, acaba que grupos de crianças diferentes vão à escola em horários diferentes, então sempre tem gente no orfanato. Às 15 h todas já estão de volta.

A instituição abriga 6 crianças que sofreram abuso, 14 que são órfãs de pai e mãe, e o restante são os chamados órfãos econômicos – têm família, mas esta não possui condições de criá-los.

Não há a exigência de um tempo mínimo de estadia por parte dos voluntários; há quem fique apenas um dia (nós ficamos três), mas a maioria fica algumas semanas, ou até meses. Na real, nada é exigido dos voluntários. Tu podes fazer o que queiras pra ajudar, quando queiras, como queiras. Depende mesmo da iniciativa individual de cada um. Não há um horário de trabalho, nem ninguém vai te dizer o que fazer. It's totally up to you!

Se por um lado isso torna as coisas bem relax e sem pressão pra aquele que quer ajudar, por outro, às vezes eu acho que as coisas acabam ficando soltas demais. Me explico. É claro que, como os diretores mesmo atestam, só de passar um tempo com as crianças já se está contribuindo pro Inglês delas melhorar (todas aprendem Inglês na escola, além de aulas extras com os voluntários), pra autoconfiança delas, etc. Mas eu me senti superperdida no primeiro dia, e muitas vezes inútil e consequentemente frustada nos outros dois. E conversei com várias outras pessoas recém-chegadas que estavam bem sem saber o que fazer, disseram que ninguém tinha dito nada direito pra elas, que estavam perdidas enfim!

Como eu só tinha três dias, resolvi que no segundo queria chegar com algum plano, fazer alguma atividade, e não ficar apenas conversando. Dei uma dormidinha depois do almoço e pensei que gostaria de acordar sabendo o que fazer. Ainda bem que deu certo. Despertei com a ideia de fazer um pôster em que qualquer criança podia colaborar com algum desenho e a sua assinatura. Cheguei lá, peguei o material necessário, colei várias folhas A3 juntas, e fui chamando as crianças que iam passando pela sala de aula. O resultado ficou legal, embora tenham participado 10 ou 12 apenas. Isso é outra coisa que é difícil: reunir várias crianças ao mesmo tempo, pois tinha tanto voluntário lá (acho que uns 25) que as crianças se dividiam. E muitas vezes elas também gostam de brincar entre elas. Nem todas falam um bom inglês, por exemplo, pra ficar batendo papo.

No terceiro dia, resolvi que ia utilizar o salão de beleza. Ao chegar, limpei o salão, que estava uma bagunça, e aos poucos as meninas, e outras voluntárias, foram chegando. Fiz alguns cabelos, unhas e fui maquiada!

O De ajudou direto na construção da cerca do playground e também fez um carrinho de bambu.

A experiência foi marcante, sim. No entanto, tenho que dividir com vocês as minhas reflexões...

Mesmo eu fazendo o pôster e brincando no salão de beleza, teve vários momentos em que me vi caminhando pelo pátio, sem saber ou sem ter o que fazer, batendo fotos apenas, ou sentando e observando, porque nem sempre tu consegues encaixar alguma atividade em meio a tanta coisa que tem pra fazer e a tantos voluntários, todos querendo dar a sua contribuição, as crianças já todas ocupadas e tal... E o sentimento que me batia era de uma inutilidade sem fim...

Fiquei pensando se fiz alguma diferença pra elas... Será? Pensei que a diferença que fiz foi muito momentânea – quando a menininha queria pintar a unha de alguém, lá estava eu com as minhas unhas pra oferecer –, mas o que eu ensinei pra elas de verdade? Algo novo? Que diferença realmente fiz pra vida delas?

Conversei com voluntários que estão lá há mais tempo, gente que dá aula de Inglês todos os dias num horário determinado, gente que anda uma hora de bicicleta e vai nas escolas das vilas ensinar Inglês, o pessoal que está trabalhando mais na estrutura física do orfanato. E eu, que só brinquei umas poucas horas e troquei ideia com elas?? Fiquei com muita vontade de ficar lá mais tempo, pelo menos um mês. Eu daria aula de dança pra elas, não a dança do ventre, algo mais puxado pro jazz, ou até umas pinceladas de samba! Falei com o Neville, um dos diretores, ele disse que tem umas meninas que adoram dançar, que daria pra organizar uma aula mais séria só com estas e outra aberta a quem quisesse participar. Isso sim talvez fizesse uma diferença além da momentânea, pensei... Mesmo aula de Inglês eu adoraria dar! Já teria até um método, diferente do método sem graça (desculpem a honestidade) que eu vi uma das voluntárias utilizando numa aula. Mas com apenas três dias não dá pra colocar um projeto legal em prática.

Também pensei que com tantos voluntários indo e vindo, fica difícil formar vínculos, não? Claro que apesar disso, é melhor ter os voluntários do que não tê-los, óbvio. Pois a verdade é que o orfanato está sempre cheio de gente, busy, alegre, agitado. É fácil ver essas crianças sorrindo!

Pra terminar, o orfanato tem o objetivo de estabelecer ensino vocacional/técnico, pra que elas tenham uma profissão ao saírem do orfanato, ou então a organização paga universidade, acomodação, até elas ficarem mais independentes.

O sentimento de frustração que eu senti é coisa minha, pessoal. Apesar disso, eu tiro meu chapéu pro New Futures, um orfanato que superou os períodos de dificuldade financeira, se estabilizou, melhora a cada dia, e principalmente consegue fazer com que as crianças sejam felizes e vislumbrem um futuro pela frente.

Tem muitos orfanatos no Camboja. Se todos forem como o New Futures, a esperança de um futuro novo pra essas crianças com certeza se realizará. E pensando nisso, termino essa história feliz!


sábado, 26 de fevereiro de 2011

A máfia do turismo – caiu na rede é peixe!

Olha, é difícil não cair na “máfia do turismo”, como eu estou chamando, que há nos países em desenvolvimento da Ásia! Mesmo a gente sempre lendo sobre os lugares aos quais estamos indo, e sempre procurando nos manter informados sobre os “scams” - ou fraudes - que acontecem por aí! Se não cais por um lado, acabas caindo na rede por outro. É motorista de táxi, de tuk-tuk, de moto, é o cara da agência, do hotel ou o vendedor de rua, às vezes tem-se a impressão de que todos (ou quase) querem tirar vantagem de ti.

A gente já tinha lido que pra ir por terra de Bangkok, Tailândia, pra Siem Reap, Camboja, era melhor não comprar o ticket nas milhares de agências de viagens que há na cidade, mas ir com o ônibus do governo, mais barato, mais rápido, mais seguro. Também já sabíamos que, ao pegar um tuk-tuk na Tailândia (uma espécie de carrinho acoplado numa moto usado como táxi), não era pra cair no papo dos motoristas, que querem te levar pras lojas em que ganham comissão.

O nosso primeiro dia em Bangkok era um dos mais importantes feriados budistas, o Māgha Pūjā ou Makha Bucha, quando se celebra Buddha e seus ensinamentos. Os tuk-tuks naquele dia estavam cobrando só 10 bath (uns 30 centavos de US dólar) por pessoa pra te levar em quatro templos (dos famosos entre os turistas: standing Buddha, Lucky Buddha, Marble Temple, Golden Mount) porque tinham gasolina subsidiada pelo governo. Quando negociamos com um dos caras, falamos que não queríamos ser levados a loja nenhuma, mas quando já estávamos no tuk-tuk pelas ruas de Bangkok, o motorista, um carinha novo, pediu pra levar a gente numa só, que a gente não precisava comprar nada, só entrar, dar uma voltinha e sair; ele foi sincero ao ponto de dizer que era só pra ele ganhar o “fee” dele. Acabamos aceitando; já estávamos pagando tão pouco, não custava nada, a gente não tinha compromisso nenhum e tal! No fim até comprei uns óculos escuros, dos baratinhos, pois tinha perdido os meus e estava um sol de rachar.

Aí, antes de irmos no quarto e último templo ele perguntou pra onde a gente ia depois da Tailândia, e nós respondemos que era pro Camboja. Ele perguntou se tínhamos ticket, eu disse que não, ele ofereceu parar num lugar pra gente pegar informação sobre como ir pro Camboja e tal, primeiro eu disse que não precisava, daí ele mostrou no mapa dele, que era pertinho de onde estávamos indo e no mapa dele eu li “Tourism Authority of Thailand” e pensei: “Poxa, é um escritório da Autoridade de Turismo da Tailândia, oficial, está até no mapa, não custa passar lá!” E passamos.

De fato, chegamos lá e estava escrito em letras garrafais, repito, “Tourism Authority of Thailand”, tanto fora, na fachada, quanto dentro do escritório. Aí o cara que nos atendeu disse que a maneira mais fácil de ir pra lá era de ônibus, como tínhamos lido. Perguntei se era ônibus do governo, ele disse que sim. Nos disse o preço, eu achei meio cara, mas ele explicou que atravessaríamos todo o resto da Tailândia e que iríamos até Siem Reap, além da fronteira e tal. Ficamos meio na dúvida se deveríamos comprar naquele momento, mas acabamos comprando, afinal era o office do governo, que não era assim tão perto da nossa acomodação, e aí já teríamos essa parte resolvida, e seria tão prático! E compramos. Aí ele nos disse que nos pegariam às 7 h da manhã no nosso hotel. Por um segundo achei isso estranho, pois é coisa de quando tu compras em agência, mas não liguei muito pra esse meu pensamento. Ele logo pegou o ticket (na realidade um papel escrito que tínhamos comprado passagem pra dois, algo bem simples, mas é sempre assim na Tailândia) e colocou num envelope. Eu rapidamente conferi se a data estava certa e saímos contentes porque já não precisávamos mais fazer esta função. Quando estávamos saindo eu olhei a fachada de novo e vi que logo depois de “Tourism Authority of Thailand” tinha “n. 12345/67” pequeninho, no entanto naquele momento não me detive nisso. O importante é que estava tudo certo!

Umas horas depois, quando já estavamos de volta no nosso bairro (Khao San Road), me deu uma intuição do nada e eu comentei com o De que achava que tínhamos pagado mais do que deveríamos pela passagem. Na sequência, reparei que todas as agências tinham escrito em algum lugar (só que dum tamanho mais normal, sem destaque) “TAT license number 76543/21”. Aí comecei a me tocar do que tinha acontecido. Falei que estava desconfiada que aquela era uma agência como outra qualquer e que no fim das contas não iríamos pro Camboja com ônibus do governo. O De então logo entrou numa agência e perguntou o preço da mesma passagem: $350 baht (US$11), quando nós tínhamos pagado $950 baht (US$29)!!!!!! Caraca, me senti muito mal! Detestei ter sido enganada!! Fiquei com vontade de ligar pro cara na hora e perguntar o que que ele achava que tava fazendo? Que tipo de religião ele tinha? Que karma ele achava que estava criando pra ele? Pra que pegar dinheiro dos outros assim, mentindo descaradamente, iludindo, enganando! Fui ver o ticket com mais atenção e não tinha nem quanto a gente tinha pagado... Não ia adiantar nada ligar pra ele...Nós não fomos nem os primeiros nem os últimos a cair neste conto do vigário! Mas que me deu uma raiva, me deu!

Depois dessa a gente já nem sabia se iria vir alguém mesmo pegar a gente no hotel, mas esperamos pra ver. No dia marcado, pontualmente as 7 h da manhã, veio um minibus nos pegar. Aí, como já aconteceu em vários outros deslocamentos que fizemos dentro da Tailândia, estávamos certo que eles iriam pegar mais gente e depois nos levar até onde estava o ônibus propriamente dito, mais confortável, melhor pra viajar as quatro horas até a fronteira. Pegamos mais um casal e outro e outro, e quando demos por nós já estávamos em plena autoestrada, ainda e definitivamente no apertado minibus! Jesus-Maria-José! Por sorte (sorte?) fomos os primeiros e pegamos o banco da frente, com mais espaço pras pernas.

Bom, também já tínhamos lido de como na fronteira sempre tentam te cobrar o visto mais caro, isso podendo acontecer de diferentes formas: seja com os próprios oficiais do “visa on arrival”, ou quando se pega o bus do governo até o terminal da cidadezinha e então de lá um táxi ou tuk-tuk até a fronteira em si, acontece direto de eles quererem parar no Consulado do Camboja que tem antes e te cobrar mais caro pra pegarem a comissão deles. Também lemos (viva o Wikitravel!) de como acaba demorando mais se tu tentas falar, ainda que de um modo jeitoso, que tu sabes que o visto é mais barato, e quando pagas o que pedem tens o visto em uns poucos minutos.

O fato foi que o minibus parou num restaurantezinho antes da cidade da fronteira. Lá já tinha uns caras distribuindo o formulário de pedido de visto, o que se por um lado parecia prático e gentil (haha), por outro já nos mostrou onde isso ia parar! Preechemos e logo chegou um outro cara, sentou na mesa com a gente, pediu nossas duas fotos e nosso passaporte (ele já tinha vários outros na mão, cada um com o seu formulário) e disse bem educadamente que ia pegar o nosso visto e depois passar com a gente (e os outros do grupo) na fronteira. Bastava a gente pagar US$ 35 pra ele (quando deveria custar US$20 ou 25, dependendo de onde pegas o visto). Eu e De discutimos em Português se valia a pena dizer que não, depois ter que enfrentar os oficiais tentando arrancar dinheiro da gente de novo e, no fim, chutamos o pau da barraca e pagamos mesmo. Comparado ao que custou o visto da Índia (US$ 100) ou da Austrália (US$ 120), ainda estava em conta.

O nosso passaporte chegou logo bonitinho com o visto do Camboja, mas ainda tínhamos que passar pela saída da Tailândia, pela entrada no Camboja (pra pegar o carimbo) e depois pegar outro bus pra ir até Siem Reap. Turistada em peso, todo mundo no mesmo barco, fila pra uma coisa, fila pra outra, um calor dos infernos, e uma vida na fronteira que parecia cena de filme do Indiana Jones quando ele está a caminho dos lugares sagrados pra onde ele vai! Uma viagem! Os turistas nas filas, enquanto vááários locais, vestindo aqueles chapéus com um pano acoplado que tapa a boca pra proteger da poeira que subia das estradas de chão batido, empurravam tal qual animais carrinhos, carroças, carretas com pilhas enormes dos artigos mais variados, abertamente na divisa pra cá e pra lá! Surreal!

Passadas as fronteiras, ufa! Agora é só pegar o ônibus ou minibus que já deve estar ali esperando e mais três horas de viagem estamos em Siem Reap! Grande ilusão!

Passava das 2 h da tarde. O nosso guia da fronteira, que já era um terceiro cara, nos mostrou onde sentar pra esperar o bus. Eu e De já tínhamos conversado um pouquinho com ele antes, inclusive de primeira ele tinha memorizado que nós éramos os brazilians! Aí eu perguntei: “Chega que horas o bus?” “Às 3.30 h”, ele disse. “You kidding!” “No, no, I'm not kidding. Primeiro a gente organiza quem vai de táxi, depois é que chegam os ônibus.” “E daí são 3 h até Siem Reap, não?” “No, no, de táxi são 2 h, o ônibus leva umas 5 ou 6.” “You kidding?” “No, no, I'm not kidding. Quer que eu te conte por que os ônibus demoram tanto?” “Por quê?” “Porque eles param em um monte de lugar pra atrasar bastante a viagem pra vocês chegarem lá à noite, aí os motoristas de táxi e tuk-tuk levam vocês pras acomodações onde eles ganham comissão, e como vocês já estão cansados e é de noite, acabam aceitando!” … Foi com esse grau de sinceridade!!

hahaha Eu só não pensei que era mentira, porque na primeira parte da viagem, quando saímos de Bangkok, a gente leu que isso podia acontecer!

Perguntamos quanto era pra ir de táxi, ele nos explicou que quatro pessoas num táxi sairia US$ 12 cada uma! Eu já tava louca pra aceitar, sinceramente! A essas alturas eu já não estava nem me importando de pagar mais US$ 24 pra ter o conforto de chegar em Siem Reap durante o dia e ter um tuk-tuk que nos levaria gratuitamente, segundo ele, pra acomodação que a gente quisesse, pois o táxi não ficaria rondando na cidade prum lado e pro outro, considerando que seriam dois casais diferentes a viajarem juntos no táxi. Perguntei que garantia eu podia ter de que ia ter tuk-tuk de graça. Ele disse: “Eu tô te falando! Vai ter!”

Demoramos pra dar a resposta, enquanto o De pensava, e ele foi baixando o preço. No fim pagamos US$ 9 cada e pegamos um táxi junto com um casal de italianos. Foi a melhor coisa que fizemos! Chegamos em duas horas mesmo, realmente tinha um tuk-tuk nos esperando, o “chefe” dos tuk-tuks disse que o motorista podia parar em duas ou três acomodações se quiséssemos ver várias, que se a gente não soubesse de nenhuma eles indicariam, sem compromisso nosso de ficar em alguma, que eles não querem dar golpe em ninguém, que eles só iriam oferecer um tuk-tuk pra nos acompanhar no templo de Angkor (um complexo de templos enorme, precisaríamos mesmo de um transporte lá e acabaríamos pegando um tuk-tuk, que é o meio mais barato!). O nosso futuro motorista veio no tuk-tuk conversando com a gente, bem simpático, perguntou quanto que a gente queria pagar em acomodação, dissemos, e eles nos levou num hotel superbem localizado que abriu há um mês, tudo novinho e limpinho, dos melhores quartos que ficamos na viagem até agora, sem dúvida!

Mas sem fugir do ponto, a máfia do turismo me deixa perplexa. A maneira como eles te cercam por um lado ou por outro, te pegam pela ignorância ou por saberes demais, pelo cansaço ou comodismo. Não sei se tem como escapar. Acho que cedo ou tarde, o turista cai na rede. E uma vez na rede, fica ainda mais difícil se desvencilhar... O negócio é ter paciência, bom humor e um pouco de dinheiro extra pra não lamentar muito as perdas... Ainda bem que tem templo de sobra por aqui! Que Buddha nos conceda esses três pedidos!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Muçulmana, Moderna, Malásia


Coloque as três palavras acima na ordem em que quiser! O post de hoje é sobre esse país que é muçulmano e moderno; é sobre as Mulheres Modernas da Malásia Muçulmana; ou as Mulheres Muçulmanas da Moderna Malásia; sobre as Mulheres Malasianas que são Muçulmanas e Modernas enfim!

Vale antes destacar que o Islamismo é a religião oficial do país - 60.4% da população se declara muçulmana. Inclusive há cortes judiciais especiais para os Muçulmanos, cujos julgamentos seguem a Sharia – não as leis civis - em casos envolvendo casamento, herança, divórcios, apostasia, conversão religiosa, entre outros. Interessante, não?

Logo que chegamos à Malásia, me chamou a atenção ver as mulheres de lenço na cabeça – o hijab – vestindo justas calças jeans. Comparando com Lombok, Indonésia, onde as mulheres muçulmanas só podem vestir roupas justas pro marido, logo vi que aqui as pessoas deviam ser mais “mente-aberta”.

Aí, no nosso primeiro dia resolvemos conhecer a Mesquita Nacional. Chegamos bem no horário em que visitas só eram permitidas aos de religião muçulmana. Aproveitamos o tempo de 1h e meia pra ir no Museu de Artes Islâmicas e voltamos no horário adequado. Tivemos que vestir um manto comprido e recebi intruções claras pra cobrir o meu cabelo com o capuz. Bonito o salão principal da mesquita e a própria construção em si, diferente do estilo mouro que encontramos nos países árabes. Mas o que fez a visita valer muito foram mesmo os folhetinhos sobre o Islam que estavam expostos na saída do salão de oração, vários deles, dos quais podíamos pegar os que quiséssemos. Escolhi três envolvendo a situação da mulher, um deles especificamente sobre o modo de vestir pregado e defendido pelo Islamismo.

Eis algumas das frases que me fizeram refletir (minha tradução livre do Inglês):

“A mídia e os políticos do Ocidente falam do Islam como sendo contra os direitos das mulheres; destacam práticas políticas e culturais que embora ocorram em terras muçulmanas não têm a ver com o Islamismo.”

“Eles sequer poupam o hijab, a vestimenta das mulheres muçulmanas, dizendo que é prova da submissão das mulheres no Islam.”

“O efeito tem sido contrário – Islam é a religião que mais cresce no mundo. Mais mulheres estão vestindo o hijab. Muitas o vêem como sinal da sua identidade muçulmana e da sua liberação do estilo de vida ocidental, que escraviza as mulheres à indústria de cosméticos e à moda.”

“O Islamismo não impõe regras sobre o estilo de se vestir, apenas ensina homens e mulheres a serem humildes nisso.”

“A roupa dos muçulmanos deve ser larga o suficiente para esconder as formas do corpo.”

“Os críticos ocidentais dos direitos das mulheres no Islam demonstram sua hipocrisia ao silenciarem sobre a indústria pornográfica de bilhões de dólares que trata a mulher como objeto, como algo sem valor.”

Concordo que nós, mulheres ocidentais, somos escravas da beleza, nos preocupamos excessivamente com isso. Mas e a mulher muçulmana também não tem vaidade e não se preocupa em estar bonita? Aqui na Malásia está claro que sim. Basta caminhar na rua ou nas estações de trem pra encontrar várias meninas com suas calças jeans (justas, como eu disse), sapatos bonitos e o lenço da cabeça cheio de detalhes, jogando com a roupa que vestem, fazendo o maior estilo. Isso não parece causar furor ou ofensa na sociedade malasiana, nem ser visto como afronta à religião muçulmana aqui. Parece que há um diálogo intercultural na Malásia que funciona, que leva a um caminho do meio entre o modo de vestir do Islamismo e a sociedade atual com seus padrões de beleza e moda.

Também fiquei pensando: não é a vaidade algo inerente ao ser humano? A gente não vê em museus peças magníficas de jóias superantigas, roupas bem trabalhadas? E em filmes e livros, não importa o contexto em que a história se passe, sempre a exaltação à beleza, a jóias preciosas, a roupas ou sapatos valiosos? Me lembrei até daquela cena do filme Sex and the City 2, mesmo não sabendo se é pura ficção ou se tem algo de real, em que mulheres com burka vestiam por baixo roupas de grandes estilistas como Dior ou Dolce&Gabbana. Não duvido nada que as esposas dos sheikes, que têm dinheiro, realmente vistam roupas caríssimas por debaixo da burka...

É uma pena que não seja fácil conversar com algumas dessas mulheres! Eu teria adorado! Mas aqui teria que se ter a sorte de encontrar alguém mais aberto, disposto a conversar com turista (o povo malasiano não é tão aberto quanto os balineses, por exemplo), e que fale inglês! Na primeira vez que passei por uma mulher vestindo uma burka preta, só os olhos dela sendo visíveis, nem foi na Malásia; foi no aeroporto de Jakarta, Indonésia. Quando estávamos passando uma pela outra, ela com o marido, disfarcei a curiosidade e não fiquei olhando pra ela. Depois, olhei pra trás, e ela também. Trocamos olhares curiosos, mas nenhuma palavra.


No fim das contas, me pergunto: qual é a diferença entre as mulheres do Ocidente e do Oriente, se todas querem estar bonitas, se ficam contentes quando adquirem uma roupa nova ou um acessório estiloso, se são vaidosas e prezam pela sua beleza?

Quanto mais eu me deparo com a diversidade do mundo, mais eu constato que no fundo – na essência – somos todos muito parecidos!

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Os templos de Cingapura

Cingapura é um país curioso! Pra começar é um país de uma cidade só (como Mônaco e Vaticano), e esta cidade-estado é uma ilha. Apesar de não ter nenhum recurso natural, faz parte do grupo dos países desenvolvidos e é um dos quatro Tigres Asiáticos (junto com Hong Kong, Coreia do Sul e Taiwan).

Embora seja uma das cidades mais caras do mundo, como dizem, não é isso o que chama mais a atenção no país, mas sim a sua multiculturalidade. Formada principalmente por chineses, malasianos e indianos, é fácil encontrar quase lado a lado mesquitas, templos hindus e budistas. No entanto, os templos mais comuns, em maior quantidade disparado, da Cingapura são os templos do consumo – os shopping centers!

É incrível! A impressão que dá é que não tem uma quadra na cidade sem um shopping ou ao menos sem um centro comercial ou um market desses de rua com váááááárias banquinhas vendendo de tudo!

No nosso primeiro dia na cidade estava chovendo sem parar (coisa rara em Cingapura, mas calhou bem quando estávamos lá), então quando estávamos cansados de andar na chuva, sempre tinha um shopping perto pra gente dar um tempo! E tem tantos, mas tantos, que em princípio eu me perguntei se haveria consumidor pra tanta loja... Minha pergunta foi logo respondida: tinha gente em tudo quanto era estabelecimento, do popular ao chique, do barato ao caro! Gente, gente, gente por tudo, comprando, comprando, comprando, sacolas, sacolas, sacolas! Ai, que agonia! Aí eu pensei que tinha tanta gente porque afinal era um domingo chuvoso. Mas na segunda-feira fim de tarde, quando a galera saiu do trabalho, as lojas ficaram cheias de novo, até altas horas da noite!

Cingapura é uma cidade tão legal, tem tanta coisa pra fazer: jardim botânico, zoológico, parque de aves, parques em geral, praia, caminhada na beira do rio, museus (aliás o Museu Nacional é ma-ra-vi-lho-so, o destaque do país na minha opinião), teatro, casino, campeonatos de diversos esportes... Será que comprar é o que os cingapurianos mais gostam de fazer???

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Capitalismo cruel


"E a sacanagem do capitalismo selvagem / Com seus tentáculos multinacionais querem mais, e mais, e mais... / Lucros abusivos / Grandes executivos são seus abastados serviçais / Não se importam com a fome, com os direitos do homem / Querem abocanhar o globo, dividir em poucos o bolo / Deixando migalhas pro resto da gentalha, em seus muitos planos / Não vêem seres humanos e os seus valores, só milhões e milhões de consumidores" (Tribo de Jah)
Quando ainda estávamos em Padang Padang, no Sul de Bali, me pus a pensar sobre o cruel capitalismo... O que mais se vê nesta ilha tão linda são resorts! Resorts em pleno funcionamento, resorts sendo construídos, terras sendo compradas por estrangeiros que devem ter o resort no papel, enfim, resorts pra todo gosto.
Um dia, pegamos uma motinho e fomos à praia de Uluwatu, famosa entre os surfistas. Não gostamos nada da praia, que aliás nem tem praia assim aberta ao público. Os surfistas têm que pular de um monte de pedra direto no mar, e as mulheres dos surfistas podem no máximo passear pelos casebres-lojinhas que tem por ali. Uns dias depois, conhecemos uma brasileira cujo filho mora aqui há 20 anos, e ela nos mostrou fotos de lindas prainhas de Uluwatu, às quais só se tem acesso através dos resorts.
Uma das coisas que mais me chocou foi saber que as diárias desses hotéis de luxo são no mínimo de US$ 8.000,00 e que eles estavam lotados! Aliás, a Julia Roberts ficou num desses quando veio filmar “Eat, Pray, Love”.
Na frente mesmo da acomodação onde estávamos ficando, em Padang Padang, tem um hotelzão em construção. Nos disseram que até a praia que frequentamos vai acabar sendo fechada pelo resort. Nos perguntamos que praia vai sobrar pros locais...
De Bali, resolvemos ir a Lombok, a ilha vizinha, onde ainda se pode encontrar praias mais remotas, mais selvagens... Infelizmente, constatamos que falta muito pouco pra Lombok ficar igualzinha a Bali. Nós fomos pro Sul, pra praia de Kuta, famosa também pelas ondas e por ser um lugar bom pra relaxar. O que encontramos? Várias placas de terras pra vender, loteamentos prontinhos, resorts a serem construídos, e um aeroporto internacional quase acabado, com inauguração prevista pra daqui a mais ou menos um ano e projeções de receber dois milhões de turistas anualmente...
Nos disseram que ao menos 70% das terras da costa balinesa são de propriedade estrangeira, embora apenas nacionais da Indonésia possam comprar terras aqui. O negócio é que sempre há subterfúgios, então estrangeiros ou firmam contratos com os locais ou abrem empresas na Indonésia, e essas sim podem adquirir terras. Lombok vai pelo mesmo caminho... Praias inteiras estão sendo compradas por gente de fora, às vezes ainda não os futuros donos dos resorts, mas gente “comum” que pretende depois vender essas terras, hoje tão baratas, pra obter um lucro altíssimo (não vão precisar esperar mais do que cinco anos, eu diria).
Parece que algumas ilhas indonesianas vão continuar sendo o paraíso que são... mas serão paraíso de poucos.
Ainda bem que a gente fica sabendo de outras atitudes que nos dão esperança. Um dia desses conhecemos um casal de holandeses que está viajando com seu filhinho de 10 meses de idade. Os dois meses de férias que ele vieram passar aqui começaram com uma ida às comunidades atingidas pelo vulcão em outubro do ano passado. Eles ajudaram na reconstrução das fontes de água potável, distribuíram vouchers de material de construção para as famílias e também lhes deram sementes para serem plantadas. Fizeram aquilo que o governo não está fazendo, nos disseram.
Claro que o que está acontecendo na Indonésia ocorre também em várias outras partes do mundo. É fácil ver até mesmo em Floripa que praias remotas deixam de ser remotas, que a exploração do turismo muitas vezes beneficia pouco as comunidades locais.
É... parece que a sede de lucro típica do capitalismo é algo comum em todo o planeta. Que o exemplo de solidariedade também seja! Se não, onde é que vamos parar?

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

As crianças de Lombok


Saímos de Bali e viemos à ilha vizinha: Lombok. Diferente de Bali, Lombok é muçulmana. A lingua predominante aqui não é o Indonesiano (ou Bahasa Indonesia), mas o Lomboquês (ou Bahasa Sasak).

Lombok é incrível em vários aspectos: praias paradisíacas de areia branca fina, coqueiros, e bem rural (ao menos no Sul, onde estamos, Kuta Lombok). No caminho pras praias de surfe, agora de motinho pelas ruas esburacadas, a gente passa por casebres que não devem ter nem luz elétrica, com suas cabras, galinhas, vacas...

Eu pensei que não fosse ter nem internet aqui (pois, como já tinham nos informado, não tem caixa eletrônico, por exemplo), mas na vilinha onde ficam as acomodações já tem internet broadband! Ou seja, se tem algo que Lombok tem em comum com Bali é o contraste. De um dos lados do lixo acumulado em terrenos baldios, vê-se cabras e crianças brincando; do outro, placas de imobiliárias vendendo terras já loteadas ou propaganda de resorts.

Falando nas crianças, é nelas que eu quero me deter neste post. Passou da 1h da tarde, hora em que elas saem da escola, tu colocas o pé na rua e vêm várias tentar te vender pulseirinhas. Elas são fofas, de 4 ou 5 anos de idade a uns 12, e falam inglês! Normalmente elas estão em pequenos grupos, e tem uma que domina mais o idioma. Aí sempre rola um papo, é claro! Elas perguntam o teu nome, te dizem “nice to meet you”, te perguntam de onde és!

Hoje uma menina, de nome Fika, quando estávamos no restaurante, veio sozinha. Aproveitou uma brechinha do dono, que não deixa elas entrarem e “incomodarem” os clientes, e veio direto pra nossa mesa. Ela se apresentou, perguntou nosso nome, nos deu um aperto de mão. Gente, muito linda ela! Eu a elogiei, é claro, e ela disse que eu também era beautiful; depois elogiou meus brincos (em formato de flor, produzidos na fábrica do meu primo Alexandre), e eu já tinha me derretido por ela. Mas aí o dono chegou e pediu pra ela sair. Eu decidi que vou comprar uma pulseirinha dela na próxima vez que a encontrar!

Depois, estávamos passeando pelas lojinhas (pequenas casinhas feitas de bambu ao longo da praia onde vendem vestidos, shortinhos, etc.) e um menino de uns dois anos disse “hello, miss!” com um sorriso, enquanto o irmãozinho dele de meses, sentadinho no chão de concreto, abanava.

Num café, enquanto tomávamos uma Bintang, a cerveja daqui, na beira da praia, outras duas meninas se aproximaram, e desta vez era a pequeninha, de uns 4 ou 5 anos, que mandava no inglês. Que pronúncia, que olhar vivo, que fofa ela! Seu nome é Mary e o da irmã, Lisa. Chama a atenção como várias aqui têm nome americano... Já conheci Tina, Anne, Julianne...

E agora há pouco, para completar, estávamos sentados tomando um cafezinho na varanda da nossa acomodação – uma homestay, que é das acomodações mais baratas por aqui –, três meninos entraram e vieram ter com a gente. Umas figuras eles! Principalmente o dominante. Todo estiloso, cabelo arrepiado com gel (ou algo equivalente), um sorrisão! Nos ensinaram umas palavras de Lomboquês: como dizer “não, obrigada”, “amanhã”, “não tenho dinheiro”... E repetiam até que a gente falasse certinho! Na real, quando eles estavam entrando eu pensei: “até aqui?!! Bem na hora do cafezinho...!”. Mas no fim o papo foi ótimo! Eu sempre pergunto se eles vão à escola, e até hoje, que é sábado, eles foram; seis dias de escola na semana (amanhã é dia de feira, nos explicaram). Aliás, é na escola que eles aprendem inglês, além do Indonesiano e do Lomboquês, por certo. Nos disseram, bem orgulhosos, que falam três linguas!

Ele (esse acabei esquecendo de perguntar o nome; ele também o nosso) falou que gostou da nossa música (era o grupo espanhol Café Quijano), perguntou quanto eu paguei no Ipod (sem usar a palavra Ipod), eu respondi que foi presente da minha mãe, disse então que achou very nice e que adora cantar. Parei a música e pedimos: canta pra gente! Ele pensou um segundo, buscando a palavra, e disse apenas: shy!

Que encanto essas crianças! Sério, eu tenho vontade de comprar uma pulseirinha de cada uma delas! Me dá uma pena de elas estarem trabalhando... Aí o Decarlos diz que a situação das crianças pobres no Brasil é bem pior, que ao menos aqui elas não estão pedindo esmola no sinal ou tentando conseguir dinheiro pra manter o vício dos pais... que o dinheiro vai pra comprar livro pra escola, como elas dizem, ou pro sustento da família, e que elas não estão num trabalho pesado, numa fazenda ou quebrando pedra, como já saiu na tevê... Mas mesmo assim me dói. Elas tinham que estar brincando, curtindo a vida... mas a vida não permite...

Bom, esse foi só o nosso primeiro dia aqui. Se continuar assim, amigas, preparem-se: vai ser pulseirinha de Lombok de lembrança pra todo mundo!

P.S.: Hoje, domingo, o De foi pro surfe e eu fiquei pra ir na feira. Quando ele tinha acabado de sair, eu esperando o café, adivinhem quem entra e vem falar comigo? Fika! Aí fiquei um tempão conversando com ela, batemos fotos, e comprei duas pulseirinhas de conchinhas. Quando eu ia bater a foto, perguntei se tinha problema; ela disse que não, que estava happy, que eu era very friendly! Depois de ir no market, que foi uma experiência e tanto, decidi ir ler na praia. Mal me sento e quando me dou conta, tem sete meninas na minha volta, entre elas a Fika. Ficamos mais de uma hora ali conversando! Claro que elas queriam mesmo era vender pulseirinha, mas eu vou mudando de assunto! A Fika é uma fofinha, com certeza a minha preferida! Sem ilusões, tenho que dizer que às vezes a insistência de algumas cansa um pouco... Ainda assim, eu gosto delas!

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Bali dos contrastes

Depois de passar por Sydney, chegamos na Indonésia. Que loucura estar na Ásia! Já no aeroporto se sente o choque Ocidente-Oriente e a diferença país desenvolvido-país em desenvolvimento.

Mas eu quero falar mesmo é dos papos que batemos com os motoristas de táxi. Pra começar, os indonesianos em geral falam pouco ou nada de inglês! Mesmo aqui em Bali, lugar tão turístico, às vezes é difícil se fazer entender. Ou seja, os motoristas de táxi, apesar de falarem pouco inglês, são os que melhor falam!


O trânsito aqui é muito louco: motocicletas, carros, pedestres, bikes, todos se misturam, passam fino um do outro, e pros locais tudo parece absolutamente normal, enquanto a gente, dentro dos táxis, no começo em alguns momentos perde a respiração! Agora, entre Natal e Ano Novo, tem muuuita gente e muito veículo na rua, então alugar carro ou motinho por enquanto nem pensar! Eu não me arrisco! Por isso táxi é a melhor opção. Pegamos tanto na nossa chegada, em Jakarta, quanto aqui em Bali pra ir de um lugar a outro. E no fim é uma ótima oportunidade pra conversar com gente daqui!


Hoje de manhã pegamos (eu, Decarlos, Ângela e Camilo, nossos amigos de Wellington que estão por aqui!) um pra ir de Nusa Dua a Sanur, onde passaremos a virada. De cara, o motorista, o Dira, nos chamou a atenção: não era um balinês tão calmo quanto os que vimos por aí. Mas como todo balinês, gosta de conversar e é simpático e risonho! Aproveitamos e enchemos o cara de pergunta!


Do nosso papo duas coisas me chamaram mais atenção. Uma é a dureza em que ele vive. Negociamos o preço da viagem e ele apareceu com um carrão. Claro que não era dele, mas do “boss”, um chinês. E ele estava nos falando que só 20% do que pagamos fica com ele. Ele mora numa casa de um quarto (se é que a casa em si não é uma peça apenas), e ele dorme na mesma cama com a esposa, o filho de 9 anos e a filha de 5. Paga 300.000 rúpias por mês (mais ou menos US$33,00). Na negociação, ele começou dizendo que normalmente esta viagem de Nusa Dua a Sanur custa $150.000 rúpias, mas como tinha trânsito ele teria que cobrar 200.000 da gente. Nem tentamos negociar. A pobreza contrasta tanto com a riqueza dos resorts na beira da praia aqui que eu nem tenho mais vontade de barganhar quando estou lidando com locais; quero mais é pagar o que eles pedem. Digo isso porque há um quase “desespero” por parte dos locais de conseguir gente pra sua lojinha, pro seu transporte, pro seu restaurante, que me dói. Enfim, o que eu ia dizer é que eu espero que ele repasse apenas 150.000 pro “boss” dele, e que fique com os 60.000 extras (demos mais 10.000 de gorjeta) pra ele e pra família. Mas como eles parecem ser honestos, fico até na dúvida!


Outra coisa que me chamou a atenção é a raiva que ele tem de muçulmanos, ele que vive no país muçulmano mais populoso do mundo (embora todo país árabe seja muçulmano, nem todo país muçulmano é árabe)! Sim, a ilha de Bali é de maioria hindu e agora nas férias vem muita gente da ilha de Java pra cá, todos muçulmanos, e o Dira deixou bem claro, mesmo no seu parco inglês, que não gosta nem um pouco deles, que eles brigam muito, que colocaram as bombas em Bali nos anos de 2002 e 2005, que não tem nada contra os chineses e os cristãos, mas que preferia que os muçulmanos não viessem pra cá.


Aí que esse papo todo me fez pensar várias coisas. Primeiro, referente à minha primeira observação – o contraste entre pobres e ricos, a exploração dos pobres – pensei que talvez nisso Indonésia e Brasil não difiram muito. Mas apesar desta minha constatação, hoje, meu segundo dia aqui, me senti triste com a pobreza, com o lixo na rua, com a injustiça do mundo... eu que sou do Brasil, outro país de contrastes...


Já no quesito religião, pensei que o Brasil tem isso de bom: tolerância religiosa! Com toda a variedade de religiões que temos no nosso país, conflitos ou desacordos violentos entre diferentes na crença não é um dos nossos problemas. Aqui na Indonésia e em outros países do Sudeste Asiático, é um item constante nos relatórios de direitos humanos de ONGs como a Human Rights Watch ou Anistia Internacional. No caso específico da Indonésia, a questão envolve restrições que o governo impõe a atividades religiosas que não condizem com os mandatos das seis religiões oficiais do país (Islamismo, Protestantismo, Catolicismo, Hinduísmo, Budismo e Confucionismo).


Aí depois eu fiquei pensando na questão dos muçulmanos. O “mundo muçulmano” é enorme e variado! Então tem-se que tomar muito cuidado com as generalizações. Mas quando muçulmanos radicais e intolerantes têm atitudes radicais e intolerantes, é muito fácil cair na generalização e falar que “os muçulmanos são isso ou aquilo”, “são violentos e terroristas”, etc. E eu acho que ao fazer este tipo de afirmação comete-se uma injustiça com a maioria dos muçulmanos... Eu atribuo parte disso à mídia, às notícias que nos chegam, mas no caso do Dira, o motorista do táxi, não sei se a mídia está envolvida... Tenho a impressão que é mais questão de experiência pessoal... E então lamento essa rixa, pra falar de forma leve, entre hindus e muçulmanos que há em alguns países do Sudeste Asiático...


De fato, Indonésia é um país bastante religioso e Bali mostra bem isso. Todos os dias os balineses colocam uma oferenda para os deuses na frente das suas casas ou lojas; to-dos-os-di-as! São florzinhas, algum pedaço de comida (já vi bolachinha, fruta, arroz) e até cigarro! Nos explicaram que é pra trazer boa sorte! E boa sorte é o que eu desejo a este país dos contrastes na resolução de seus conflitos! Selamat Tahun Baru (Feliz Ano Novo) pra Indonésia e pra todos nós!

P.S. Só pra esclarecer, depois do Dira pegamos vários outros táxis e nenhum dos motoristas tinha raiva de muçulmano! Bem que a gente logo notou que o Dira era um balinês mais nervoso, como eu disse antes. E mesmo os conflitos ligados a intolerância religiosa aqui ocorrem em partes específicas da Indonésia. Bali é uma ilha pacífica, linda, interessante e, sim, de contrastes! (em 7/1/2011)