domingo, 17 de outubro de 2010

Violência doméstica: Nova Zelândia x Brasil

Quando a gente vem do Brasil morar na Nova Zelândia, em princípio fica encantado com tudo: os serviços públicos funcionam que é uma beleza, os privados não ficam atrás, as pessoas se respeitam, ninguém fica tentando te passar a perna ou tirar vantagem em tudo... enfim, uma maravilha de país, onde cada um tem seu espaço e onde parece até que a gente tem mais direitos como ser humano.

Até nas propagandas de tevê ou nos rótulos dos produtos eu acredito mais! Como consumidora, tenho o sentimento de que as empresas estão falando a verdade e anunciando exatamente aquilo que corresponde ao produto! Decarlos costuma dizer que pra mim aqui na NZ tudo vende. Depois de escutar meu “hummmm” de aprovação de certo comercial, ele pergunta: “Vendeu?” E minha resposta é sempre sim! :)

De fato, eu ainda me encanto com o país em vários aspectos e digo que não é à toa que a NZ é o país menos corrupto do mundo! Mas nem tudo são flores!

Um dos maiores problemas de direitos humanos aqui é o da violência doméstica, estando aí incluídas não só a violência física ou sexual, mas também a violência psicológica. E embora a gente pense de cara na mulher, a violência doméstica também acontece contra crianças, idosos e pode até rolar contra homem! Mas sim, nossa primeira ideia faz sentido e são as mulheres as maiores vítimas.

Aqui existem várias organizações governamentais e não governamentais que cuidam do assunto e é interessante ver as diferentes formas de lidar com a questão. A principal campanha no momento é a “Family Violence – It’s not ok”, que busca envolver os amigos e família (para além da vítima) no combate à violência doméstica. A ideia é desafiar as atitudes e comportamentos daqueles que toleram qualquer tipo de violência, levando todos a acreditar que podem fazer algo pra prevenir a violência e pra ajudar quem precisa mudar.

Por outro lado, achei igualmente interessante o projeto “Safe at Home” que tem sido colocado em prática nos subúrbios de Auckland – que, como a maior cidade do país, tem as áreas mais violentas. O objetivo é fazer com que as vítimas de violência doméstica estejam e se sintam mais seguras através de uma ação que pode até parecer meio óbvia: fazendo suas casas mais seguras. Assim, uma parceria de órgãos do governo financia NZ$ 4.000,00 por casa para colocar um sistema de alarme que quando acionado traz a polícia na porta em poucos minutos (claro que este tipo de ajuda é para vítimas em risco extremo). Como resultado, as vítimas conseguem dormir à noite, lidam melhor com os desafios e estresses do dia a dia e isso acaba gerando mais estrutura e benefícios inclusive pras crianças da família. Nas moradias que são parte do projeto, praticamente não houve mais casos de violência. E se você está pensando que a Nova Zelândia é um país rico e por isso eles têm dinheiro pra investir neste tipo de prevenção, atente-se para o fato de que um homicídio aqui custa mais de 3 milhões aos cofres do país.

Falando em números, na Nova Zelândia metade dos homicídios cometidos contra mulheres envolve violência doméstica. No Brasil já vi estatísticas falando em 70%. Aqui na NZ, dizem que uma em cada três mulheres sofreu ou sofrerá algum tipo de violência. No Brasil, a cada 16 segundos uma mulher é espancada. Não, eu não escrevi errado, são 16 segundos mesmo.

E isso é outra coisa que me chama atenção aqui: os números. Não dá pra comparar os números absolutos de qualquer estatística entre Brasil, com mais de 180 milhões de habitantes, e NZ, que tem em torno de 4 milhões. Ainda que a gente esteja falando de um problema grave aqui, basta pegar a quantidade de homicídios contra mulheres pra se impressionar, isso sim, com a violência doméstica no nosso país. Na NZ uma mulher é assassinada por seu companheiro ou ex-companheiro a cada 5 semanas. Façamos o cálculo, se um ano tem 52 semanas, isso dá mais ou menos 10 mulheres por ano (no relatório da polícia sobre o ano passado, o total de assassinatos no país foi 65). Fica até chato falar dos números brasileiros porque vocês vão pensar que eu tô mentindo, mas nos últimos anos, 10 mulheres foram assassinadas por dia!

É de chorar! Enquanto na Nova Zelândia o problema da violência doméstica é um dos maiores do país em termos de direitos humanos, no Brasil, embora bem mais grave, é “só” mais um, entre tantos outros.

Ainda assim, eu tenho a impressão de que aqui eles levam isso mais a sério... Ou será minha visão já (não à toa) condicionada de que as coisas na NZ funcionam melhor e de que aqui as pessoas são mesmo levadas mais a sério?

É o fator cultura sempre presente. Na NZ, o cidadão tem voz. Se há um problema e um grupo, ainda que pequeno, de pessoas leva a questão ao governo (através, por exemplo de uma manifestação, entre outros meios), a mídia logo veicula matéria sobre o assunto e atitudes são tomadas para solucioná-lo. Me dá a impressão de que os governantes têm mais consciência de que estão de fato representando o povo... acho que entendem melhor o que é a democracia representativa e participativa que está em prática. É a educação, eu diria, formando concepções culturais que “trabalham” em prol dos direitos humanos.

Por outro lado, eu também me pergunto se isso se deve ao fato da NZ ser um país tão pequeno. É incrível, mas mesmo eu não sendo sequer residente (oficialmente falando; eu tenho apenas visto de trabalho), eu me sinto mais próxima do governo neozelandês do que eu me sentia do governo brasileiro. Moro na capital do país, e em diversas oportunidades estive lado a lado com membros do Parlamento (equivalente aos nossos senadores e deputados federais), pra citar um exemplo do que me faz sentir próxima a quem está no poder.

Mas após refletir, concluo que o fato de o país ser pequeno ajuda, porém sem uma verdadeira cultura democrática e participativa, tenha o país o tamanho que for, as coisas não funcionariam bem.

Voltando ao tema da violência doméstica e aos projetos implantados aqui, embora o pragmatismo do “Safe@Home” gere resultados mais imediatos, eu jamais dispensaria o “Family Violence – It’s not ok”. Este quer mexer mais fundo, quer mudar a concepção existente que faz com que alguns achem que podem fazer o que quiserem contra os “inferiores” com quem vivem. Campanhas que estão imbuídas de visão do futuro acabarão gerando uma mudança mais sólida e efetiva na sociedade como um todo.

O diálogo de fato tem que ser cultural; and this is ok.


Mais sobre Safe@Home:
http://www.nzherald.co.nz/nz/news/article.cfm?c_id=1&objectid=10679565

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

VIOLÊNCIA POLICIAL NO BRASIL: questão de segurança pública ou de concepção cultural?


Há mais de 10 anos, quando comecei a estudar direitos humanos e o sistema interamericano de proteção, me chamava a atenção o fato de a maioria dos casos brasileiros submetidos à Comissão ou à Corte Interamericana de Direitos Humanos, cuja sede fica na Costa Rica, tratar de violência policial.

Recentemente, ao pesquisar os relatórios elaborados pela ONG Human Rights Watch sobre o Brasil, desde 1991 até hoje, constato que a maioria deles é sobre – de novo – violência policial. Dos 14 já publicados, 10 tocam direta ou indiretamente na questão.

Agora há pouco, estava eu lendo o Informe 2010 da Anistia Internacional sobre o Brasil e adivinhem qual tema ocupa a maior parte do relatório? Sim, violência policial! É incrível que tão pouco tenha mudado nos últimos, digamos, 20 anos, apesar da pressão da sociedade civil (representada especialmente pelas ONGs) e da comunidade internacional! O que estaria faltanto? Pressão da comunidade nacional talvez?

O Informe da Anistia Internacional diz que “por todo o país, houve relatos persistentes de uso excessivo da força, de execuções extrajudiciais e de torturas cometidas por policiais” e que as autoridades continuam “a descrever as mortes cometidas por policiais como ‘autos de resistência’, em contrariedade às recomendações do relator especial da ONU sobre execuções sumárias, arbitrárias ou extrajudiciais, e em contrariedade ao III Plano Nacional de Direitos Humanos”. Em vista disso, não surpreende que centenas de homicídios não tenham sido devidamente investigados e que tenha havido poucas ações judiciais para processar os agentes públicos envolvidos na comissão de tais crimes, se é que houve alguma.

É de desanimar. Morando em outro país, por muitas vezes me pego nostálgica, com muita saudade do Brasil, louca pra voltar a morar aí. Aí quando me deparo com esse tipo de notícia, quase dá vontade de mudar de ideia. Claro que isso é a indignação do momento, e que no fim das contas eu continuo firme no plano de voltar pro Brasil... Mas que tem coisa que é triste, isso tem!

Ao menos no ano passado algo foi feito como um primeiro passo pra tentar reverter a situação: foi realizada, finalmente, a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, com a participação de representantes de diversos órgãos governamentais e também da sociedade civil. Como resultado, propostas relativas a diversos assuntos – fiscalização, apoio psicológico, descentralização, investimentos, salários etc. Se elas forem colocadas em prática, eu acredito que pode haver melhora... Ou não?

Eu me pergunto se a questão da violência policial em realidade não constituiria uma concepção cultural brasileira. Será que no fundo não aceitamos todos (ou quase todos) que a polícia tem poder pra fazer o que queira, especialmente contra bandidos, marginais, infratores? Ponho esses termos em destaque porque me parece muito fácil colocar de primeira esse rótulo nas pessoas, mesmo sem provas, com base em preconcepções discriminatórias, e a partir daí achar que contra essas tudo vale.

Uma vez me disseram que pra mudar uma concepção cultural é preciso três gerações. Pode até ser. Leve o tempo que levar, eu ainda acredito na educação. E por isso me chamou a atenção o fato de não haver, entre as propostas aprovadas na Conferência, nenhuma que trate especificamente da educação em direitos humanos para agentes da área da segurança pública. Os direitos humanos são mencionados como valor a ser respeitado, e fala-se em educação das crianças para o trânsito, em educação ambiental ou mesmo em geral, como forma de prevenção da violência. Ótimo, concordo com isso. Mas deixo aqui minha sugestão para cursos de direitos humanos também para os agentes policiais.

Informar e conscientizar é o primeiro passo para uma mudança de mentalidade e atitude.

Respondendo à pergunta-título, claro que violência policial é questão de segurança pública. Mas para que haja mudanças mais profundas, há que se provocar alteração numa matéria cultural que está imbutida disfarçadamente na nossa sociedade. Como se vê, o buraco é bem mais embaixo!

Foto: cena do filme Tropa de Elite.
Informe 2010 da AI: http://www.br.amnesty.org/?q=node/697